único

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Existia uma linha entre a calma e o caos. Em meio dela, havia Cellbit, dirigindo com seus dedos repletos de sangue daqueles em que um dia foram seus amigos. Apertou bem forte seus olhos, evitando olhar pelo retrovisor o corpo de Roier estirado no banco de trás do carro, fazendo o homem quase engasgar de desespero

— Vai ficar tudo bem — sussurrou para si mesmo.

Era quase a mesma frase que disse para sua mãe antes dela morrer. Em um carro também. Do mesmo jeito que deixaria Roier morrer. Péssimo médico, hein?

— MERDA!

Cellbit se culpava desde o momento em que a grande criatura acertou o peito de Forever e, com tudo, o rasgou por inteiro. Se culpava também de quando ouviu o tiro que matou Halo, e não pode fazer nada.

O paranormal acabava com a vida do loiro, que apenas tentava não passar todos os sinais vermelhos nas ruas pouco movimentadas de São Paulo. Naquela hora da madrugada, ouvia-se apenas o coração incessante de Cellbit, nervoso, enquanto um novo incêndio começava na escola Nostradamus de Ensino Médio, onde jazia o antigo corpo de Tilin, seus amigos, e memórias gostosas e quentinhas deixadas para trás.

As lágrimas frias desciam dos olhos de diamantes do homem, que quebravam cada vez que seu olhar pregava no sangue do carro. O óculos quebrado de Halo ainda estava jogado no banco, junto com o diário de Forever, seguido da música baixinha dos Lovejoy. Como eles amavam aquela banda. Como Roier adorava aquela banda.

As vezes, Cellbit tinha deslumbres do que era real e irreal. Tudo se misturava. Quando parou o carro, não soube quando levou Roier para dentro do hospital, ou quando foi quase agarrado por conta de seus ferimentos também. A ordem de cada fator se misturava em sua cabeça, enquanto sussurrava baixinho o nome do jornalista. O gosto metálico do sangue em seus lábios finos deixavam Cellbit enojado, cansado de ver tanto sangue, tragédia.

Em toda a carreira de cientista de Cellbit, o homem nunca sentiu tristeza. Quer dizer, abrir aqueles corpos era triste, mas já estavam mortos, não havia misericórdia e só esperava que estivessem bem, seja lá onde fosse. Durante todo o tempo em que esteve em frente a cadáveres, ver corpos mortos nunca doeu tanto quanto ver todos os seus amigos dilacerados em sua frente, e Roier lutando contra a morte para permanecer acordado.

Sua coragem era perceptível, em salvar Cellbit, salvar todo mundo, em salvar a si mesmo. Não precisaria ter tido essa coragem se Cellbit tivesse descoberto antes, gritado o nome de Gabriel e salvado seus amigos. Era terrível. E era principalmente sua culpa.

Esse pensamento fez o cientista adormecer, na maca ao lado de Roier, esperando que em algum momento da madrugada, suas mãos se encostem para terem certeza que estavam vivos. Um ao lado do outro.

.

Mas não foi isso o que aconteceu.

Foram semanas seguidas de uma dor indescritível do homem. As olheiras que, antes já faziam presente em seu rosto, decoravam mais ainda abaixo de seus olhos. Sentiasse um fiasco completo.

Saudades do bafo de cigarro caro e Roier, e se suas piadas sem graças, completo de super-herói e seu perfume gostoso que invadia as narinas de Cellbit. Conhecia ele há duas semanas, tempo o suficiente para todos os dias apertar sua mão naquela cama de hospital, e voltar para casa sem uma notícia boa que acalmasse seu coração. Quando Cellbit se tornou assim?

Pegou as chaves do bolso de seu jaleco, tentando entrar no apartamento do homem. Foi a terceira chave do grande bolo que abriu as portas. A casa de Roier era tão parecida com ele que fazia Cellbit quase sentir como se o mexicano o abraçasse. Alguns posters do homem aranha, e um cheirinho de café inconfundível junto com o terror do aroma do cigarro. Não era grande, era exatamente o que um jornalista recebendo menos de um salário minimo ganharia.

𝗙𝗜𝗡𝗘 𝗟𝗜𝗡𝗘 , guapoduo.Onde histórias criam vida. Descubra agora