𝐬 𝐮 𝐬 𝐬 𝐮 𝐫 𝐫 𝛐 𝐬

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O silêncio era sua mais preciosa conquista. O silêncio, e então as cores. Enquanto jogava as cores na tela, pintando o verde alaranjado de um gramado ao pôr do sol, era como se o mundo, caótico e barulhento, estivesse longe, e ela fosse inalcançável.

Por muito tempo, seu próprio caos e caos do mundo se chocaram, se uniram, e suas cicatrizes provam que ela quase não sobreviveu.

Foi o silêncio, que ela com custo cultivou, que a salvou de tudo aquilo, a salvou de si mesma. E agora ela tinha as cores, que ela salpicava na tela via o mundo como devia ser, congelado em um momento de felicidade.

Sua avó por vezes parava no batente da porta, e ficava a observando pintar por alguns minutos, e então avisava que tinha passado um café fresquinho. Mas hoje, não, hoje ela apenas havia parado, observado que a neta pintava com tanta concentração, que não disse nada. O aroma do líquido já se espalhava por toda casa, ela preferiu ir cuidar do jardim, enquanto Ana terminava aquela linda pintura.

Elas se davam bem, e Ana sentia imensa gratidão por sua avó, que a salvara de seus pais, a salvara das decisões que tomara por medo.

Era, no entanto, sua única amiga. Sua avó. A solidão não era um grande problema para ela, mas sabia que sua avó não duraria para sempre, e isso a aterrorizava. Mas, naquele momento, apenas pintava, como se medos fossem apenas lendas irreais, e seus sussurros fossem inaudíveis.

As horas voaram como gaivotas, que ela pintava com a tinta óleo em duas pinceladas sobre o céu amarelado.

O que poderia estar errado na vida de uma mulher que morava com a avó, sem emprego fixo e sem amigos?

As coisas só pareciam erradas quando se pisava para fora de casa.

Ela certamente não estava esperando vê-lo parado à sua porta, depois de todos aqueles anos. Ele, certamente, tinha o estômago embrulhado, carregando consigo uma preocupação e várias memórias de infância.

O que havia acontecido? Por que Ana havia mudado tanto? Ele não era a mesma pessoa que era há 10 anos atrás, e ela certamente não devia ser. Quando olhasse em seus olhos novamente, o que veria?

Os olhos cheios de mágica e uma impressionante sabedoria da Ana das férias escolares do segundo ano? Ou os olhos cheios de dor e raiva de uma Ana adolescente? Talvez encontrasse uma Ana madura, que soube conciliar seus anjos e demônios. Ele esperava que sim.

Havia perguntado a uma amiga da época da escola, já que não a encontrou no facebook. Essa amiga, que era amiga dele e não de Ana, morava na mesma rua, e sua mãe conversava com a avó de Ana no mercadinho do bairro.

Ela morava com a avó, em uma rua sem saída, numa casinha térrea na parte mais alta do bairro, de onde podia-se ter uma vista de um grande matagal. Ele atravessou o quintal da frente, passando por baixo de um salgueiro que precisava de poda.

Deu três batidas na porta, bem rápido.

O pincel sujo de amarelo mostarda sujou o chão do ateliê.

Seus ouvidos acordaram e ela ouviu o som de uma garoa que começara a cair. Piscou os olhos e levantou-se da cadeira, conseguiu ver que sua avó cochilava no sofá. Andou até a porta e respirou fundo, preparando-se para sorrir e falar.

Quando viu aquele rosto encarando-a, pensou estar sonhando. O que aquele homem, que havia sido um dia seu amigo, estava fazendo em sua porta, com os olhos sombrios?

- Ana - ele falou, e tentou esboçar um sorriso. - Quanto tempo. Posso entrar?! - Soltou uma risadinha nervosa, que ela percebeu. Ela percebia tudo.

- A última vez que te vi... - Ela começou, enquanto uma enxurrada de memórias a percorria, e o silêncio não era mais uma opção.

Sussurros [Conto]Onde histórias criam vida. Descubra agora