Nossas Melhores Mentiras

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- Traz a água quente, menino! - a voz esganiçada veio do último cômodo da casa. A porta aberta e a corrente de ar que circulava no recinto elevavam a sensação de obrigação imposta no chamado. - Já deve tá fria uma hora dessas!

A hora do banho do irmão menor era a única em que Tiago conseguia ter alguns minutos de folga para si, já que a mãe se ocupava em lavar o mais novo e o deixava sozinho.... Bem, pelo menos um pouco mais sozinho do que de costume, mesmo que só por alguns minutos. Como o sistema de aquecimento de água da casa estava quebrado há um bom tempo, e chuveiro era considerado artigo de luxo, era seu dever esquentar a chaleira no fogão à lenha e levar para o banho.

Isso lhe dava exatos sete minutos de completa calmaria entre as paredes do seu quarto.

- Tiago, meu filho, quer que seu irmão pegue uma pneumonia?!

Tiago suspirou.

O cronômetro chegara ao zero.

Ele enrolou a roupa nova num lençol velho e socou a trouxa nos fundos do guarda-roupas de madeira, tomando cuidado para cobri-la com todas as camadas de pano disponíveis no local, todas as calças jeans e meias que conseguiu juntar. Fechou o pote de gel e ajoelhou-se nos tacos puídos do chão, escondendo o produto atrás do pé da cama, onde a mãe não conseguia alcançar com a vassoura. Antes de se livrar do pente que usara, Tiago cheirou o objeto e o odor alcoólico do gel o fez suspirar novamente.

O pote tinha lhe custado toda a mesada de três meses e ele desenvolvera uma espécie de ritual durante os sete minutos que tinha consigo mesmo todos os dias. Abria o pote, pegava uma quantidade irrisória de gel, passava no cabelo e se olhava no espelho. Colocava a roupa nova por sobre o tronco e deixava a imaginação brincar com seus olhos... Quando a mãe chamava, o pente tirava o excesso de creme dos fios e as roupas iam para o lugar de sempre, camufladas pelas camisas xadrez de botões e as meias cheias de furos de traças.

Ninguém sabia da existência da roupa, muito menos do ritual.

Era assim todo dia e Tiago duvidava que chegaria a hora em que ele poderia sair com aquela vestimenta pela porta da frente, ou usar o pote de gel sem ter de escondê-lo depois. Afinal, se seu pai visse a "falta de vergonha" que seu filho tinha, não sobraria um fio de cabelo na cabeça pra contar história, nem pano pra manga.

- Aqui - o garoto ofereceu a chaleira na porta do lavabo. A mãe passou a mão no avental desajeitadamente e, gota por gota, enxaguou o menininho levado que brincava com a barra de sabão de coco no chão sujo.

- Levanta daí! - a mãe ralhou e o menor reclamou, mas fechou a boca pra não chorar alto, largando a barra de sabão.

Tiago ficou escorado no batente observando a cena por alguns minutos. Ele aprendera rápido, o mais novo, a não contrariar os pais. Era assim que ele e Paulo sobreviveriam.

Era quase cinco da tarde e os presentes sabiam que o homem da casa estava prestes a voltar do trabalho que praticava na fazenda vizinha. Ao terminar de retirar o excesso de sabão do filho, a mãe se virou para Tiago e eles trocaram um olhar significativo, que não era preciso ser transformado em palavras.

Tiago foi para a cozinha passar o café, estender a mesa, cortar pedaços de bolo de fubá e depois se ocupar em varrer a sala, organizar as almofadas, trocar a colcha da cama de casal... Tarefas é que não faltavam. Quando seu pai chegasse, ele se distrairia com a mulher e o filho mais novo, atirando ordens a torto ao mais velho, exigindo serventia absoluta.

Os únicos sete minutos que tinha para si haviam há muito se acabado, afinal.

A rotina era quase sempre a mesma. Tiago se levantava às cinco da manhã, meia hora antes do pai, para coar o café e esquentar o leite que ele tomaria. A mãe normalmente estava de pé dez minutos depois, mas se ocupava em não deixar Paulo chorar para acordar o marido antes da hora necessária. Ela orientava e observava o trabalho do filho mais velho, que às vezes tinha que ir ao relento, no frio da madrugada, para tirar leite da vaca e voltar antes que o pai lhe visse fazer tal coisa.

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