Me And The Devil ( Em Andamento)

27| O flagrante

Alice.
Um dia antes.

Nem pisquei quando Cora andou em minha direção, me empurrando de lado para que eu me afastasse do livro.

Ela se agacha para recolher os bilhetes e quando os guarda de volta ao seu lugar, me encara com os olhos fumegantes.

Foi onde agradeci mentalmente ao céus  por ela não ter nascido com nenhum dom especial de fogo, caso contrário, eu já estaria derretida ali mesmo.

ㅡ O que pensa que estava fazendo?!

Engulo em seco, me lembrando do celular em minha cintura. Se as minhas suspeitas estivessem certas, e se ela realmente quisesse o celular, logo iria notar que ele não estava mais onde havia deixado.

Eu precisava sair dali e rápido.

ㅡ E-eu estava a procurando.ㅡ olho para o livro, mas ela se coloca na frente.ㅡ Me desculpe, vó. Eu só me senti atraída  pela antiguidade desse livro... me parece ser bem velho. ㅡ a encaro.ㅡ É seu?

Ela pisca algumas vezes e seu semblante volta à inexpressividade, o que era pior ainda.

ㅡ Não é da sua conta se é meu ou não.  Eu não ando no seu quarto, revirando as suas coisas.ㅡ dá um passo para frente, ainda me fitando com ódio gélido  e quase palpável. ㅡ Chegou à matar a sua curiosade, Alice? Veio ver se achava alguma coisa do seu pai aqui?

Me obrigo à não estremecer diante de seu olhar. Ela era quem estava escondendo algo.

ㅡ Sim.ㅡ respondo.ㅡ Eu vim ver se você tinha algo sobre o meu pai, mas só encontrei fotos de Marie. ㅡ Não  cito em nenhum momrnto os bilhetes. Ela me comeria viva se soubesse que eu havia lido alguns.ㅡ O que não é nenhuma novidade, visto que ela é a sua preferida.ㅡ as palavras saem mais fáceis do que eu podia imaginar.

Talvez estivessem presas na garganta. Mas, mesmo diante disso, Cora bem mesmo pisca, inabalável.
Isso só faz a minha fúria aumentar.

ㅡ Se a senhora pensa que pode me moldar da forma como molda ela, está muito enganada! ㅡ trinco os dentes.ㅡ Ela pode não perceber, mas eu percebo o quanto você tem medo de que ela saia da sua linha. Tem medo de que ela viva a vida dela, longe de você e sem te meter nisso!

"Mas eu sou bem diferente, vó. Você não  vai afastar meu pai de mim, só porque não gosta dele. Você não tem o direito de me tirar pelo menos a dúvida de saber como ele é!"

ㅡ Alice.ㅡ uma ordem, e eu a ignoro.

ㅡ O acidente pode ter mexido com a minha cabeça e com a de Marie, mas você  também não ajuda. Nem se quer fala sobre a nossa mãe. Como ela era, o que gostava de fazer...ㅡ paro de falar, sentindo as lágrimas queimarem os meus olhos.

Cora ergue uma sobrancelha, nem mesmo dor relampeja em sua íris.  E isso não deveria ter me afetado tanto quanto afetou.

ㅡ Você diz que nos ama, mas eu não chamo essa sua superproteção de amor.ㅡ sinto o gosto amargo das palavras na garganta.ㅡ Não chamo o que você faz com Marie, de amor. Você gosta de estar no controle, e a trata como se ela fosse uma criança indefesa, mas porra, ela não é!

Cora ergue um dedo, me fazendo calar. Alguns segundos se passam, e ela ainda me encara.

ㅡ Você não  passa de uma garota tola com os sentimentos de falta paterna, aflorados, Alice. ㅡ sua voz sai dura e baixa, atingindo diretamente em uma parte sensível minha.ㅡ Tudo o que disse, fala mais sobre você do que sobre a sua irmã.

ㅡ Não é verdade! ㅡ digo entre dentes, mas ela me ignora.

ㅡ Odeia a "atenção" que sua irmã recebe, mas eu lhe garanto qur não gostaria de estar na pele dela.ㅡ bufa.ㅡ Vocês são inexperientes com as coisas da vida, Alice. Foi acobertada de tantas situações... e eu não  a culpo por ser assim.ㅡ o canto da sua boca se entorta.

ㅡ Ah! E Marie não?!ㅡ me irrito.

ㅡ Por acaso, Alice, você acorda no meio da noite, sobressaltada por algum pesadelo ou trauma? ㅡ inclina a cabeça.

Fico quieta, sem saber o que dizer. As palavras me fogem.

ㅡ Não,  não é mesmo? ㅡ continua.ㅡ Durante todos esses anos, Marie tem sofrido com isso, e só parou quando eu, a avó superprotetora e que não ama vocês, me meti. Já se perguntou o porquê de eu dar amuletos à ela, e não a você? Amuletos esses, que você também invejava. ㅡ cruza os braços, me olhando como se pudesse ler cada pensamento meu. ㅡ Porque não era você quem estava se afundando na escuridão, menina!

Sinto como se tivesse levado um tapa na cara.

Sim, houve uma época sombria em que Marie não saia do quarto, não comia e chegou à níveis preocupantes de peso.
Mas ela não me queria lá dentro, então eu nunca entrei.

Essa havia sido a sua situação  na maior parte dos anos. Hoje em dia eu acredito que ela tenha tido depressão, e como Cora acreditava no que queria, não havia percebido isso.

A depressão deveria tê-la feito ver coisas, alucinar. Era a explicação mais óbvia para o estado de Marie.

Até que ela melhorou, mas a sua memória havia sido drasticamente prejudicada. Marie não se lembrava de quase nada. Uma espécie de esquecimento pós trauma. 

Demoraram tempos até que ela mantesse uma relação de amigas, comigo. E, como eu achei melhor na época, nunca perguntei muita coisa.

Ignoro a lembrança.
Era um assunto pouco falado ali.

ㅡNão fale como se eu também não tivesse perdido a minha mãe, e de estar sendo privada de conhecer o meu pai.ㅡ tento rebater.ㅡ Marie nunca me falou nada disso. Ela nunca me fala sobre nada.ㅡ mesmo eu nunca tendo perguntado,  se ela quisesse dizer, teria dito. Não é? ㅡAliás, sempre tem um segredo entre vocês... como eu vou saber?!

Cora ri sem nenhuma emoção. Ela só reproduz uma risada qualquer.

ㅡ Você realmente só olha para o próprio  nariz.ㅡ se vira, andando até a porta e a abrindo mais.ㅡ Se quer saber algo sobre o seu pai, aí está... pois, assim como você, ele também só olha para o próprio nariz. ㅡ indica o lado de fora.ㅡ Você vai me agradecer por estar lhe avisando isso, se um dia o encontrar. ㅡ cerro meus punhos.ㅡ Já acabou? Então saia e não volte mais à bisbilhotar o que não é seu.

Sem olhar para trás, passo por ela com passos largos e duros, ainda sentindo o peso das suas palavras em mim.

Pelo menos eu tinha o celular.