Capítulo V

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Os minutos passaram rápido demais, quando fui perceber já estávamos conversando a um bom tempo. Embora as piadinhas fossem constantes, nos momentos que eu falava eles faziam o possível para manter a postura. É meio engraçado como em certo momento eles parecem se odiar completamente, mas em outro são como dois amigos brincando — apesar dessas "brincadeiras" chegarem a ser violentas.

— Então… tem algo que eu quero saber, porque vocês são… como posso dizer, grandes? — Yahto já havia levantado essa dúvida e agora que tenho essa oportunidade, não vou perdê-la, principalmente por eles estarem sendo legais… até demais comigo.

— É coisa de família, não valeria a pena contá-la enquanto tomamos banho, mas em outra oportunidade, quem sabe… — Deliah se recostou nas pedras e me encarou com um sorriso sutil no rosto, deixando claro o interesse em contar essa história, porém tenho certeza que há segundas intenções.

— Ignore ele. Nós não esperávamos te encontrar aqui, e aproveitando, também queríamos saber mais sobre você. — Wyllan por outro lado detinha um olhar curioso, como se nunca tivesse visto alguém como eu na vida, talvez por eu ser algo "improvável"? Não sei direito qual a palavra certa, mas provavelmente ele acha que sou algo de outro mundo.

— Esse assunto é… meio delicado, eu não sei se vocês dois entenderiam. — Tento evitar contato visual com eles, no final esses dois são apenas desconhecidos que querem algo, mesmo que eu fosse contar só o básico já seria sufocante. Eu já vi esse cenário se repetir, outras vezes e como todas elas, sinto um formigamento de nervosismo no corpo.

Desde a primeira vez que eu os vi essa sensação volta quando nos encontramos, tem momentos que meu coração parece sair pela boca. Ambos podem pegar a fêmea que quiserem, então por que parecem tão interessados em alguém como eu? Por que sou diferente? Sinceramente não sei, meus sentimentos gostam de brincar comigo, mesmo sabendo que a culpa da minha situação atual é deles.

"No fim, tudo vai se repetir…"

Estava tão perdido que nem notei quando duas mãos seguraram meus ombros, eram eles… e para piorar tudo, os dois vieram pro meu lado, saindo da divisória e se ajoelhando para ficarem da minha altura, escondendo boa parte dos seus corpos dentro do lago — o que não adiantou muito pois a água é transparente.

— Sabe, só te ouvir já basta. — Apesar de terem vindo pro meu lado, após esse primeiro toque, eles propositalmente ficaram a pelo menos dois metros de distância, como se quisessem respeitar meu espaço pessoal e soubessem o quão receoso eu fico em relação a contato físico.

— Nossas tribos já são excluídas pelas outras, por isso te entendemos, você possui total liberdade de se abrir conosco, essa conversa jamais sairá daqui. Inclusive, esse imbecil não consegue nem contar fofoca direito, quanto mais expor um segredo. — Novamente eles rosnaram um pro outro, talvez só como uma tentativa de quebrar aquela situação tensa

De alguma forma essa briguinha boba conseguiu aliviar meu nervosismo, principalmente por vê-los tentarem ser cavalheiros — cada um a seu modo — São essas reações que ainda me dão uma fagulha de esperança, como se vissem algo além do meu próprio corpo.

— Tem coisas que eu não posso contar, de verdade, algumas coisas continuam sendo complicadas. Porém, obrigado pelo apoio. — Sorrio.

Levanto da água com os dedos completamente enrugados, provavelmente devo ter ficado mais de quinze minutos só batendo papo. Eles notaram que eu iria partir e por isso, tamparam o rosto para que eu pudesse ter privacidade. De todas as brigas, essa foi a mais engraçada, pois um cobriu os olhos do outro por total desconfiança.

Ao sair da água, pego e visto minha tanga sem preocupações, eu ainda tinha aquele sorriso bobo no rosto e mesmo quando vou tomando distância da região, eles continuaram lá parados sem mexer um único músculo, ambos mantiveram o respeito até o final. "Foi… divertido".

Pude ouvir os sons de uivos ao longe após a despedida, só podia ser eles brigando novamente por outro assunto bobo, tem vezes que ambos até parecem próximos demais na hora de se provocarem, me pergunto há algum motivo além do que essas disputas, infelizmente isso é algo que não saberei tão cedo.

Fiquei distraído o suficiente para chegar no bosque e encontrar Zhari varrendo o chão enquanto os outros aparentavam estar bebendo embaixo das árvores, chuto que seja algum chá, já que xamãs eram proibidos de se embebedar nos dias antecedentes ao festival, e quando o dia chegar, tenho certeza que Yhoki vai tomar todas até cair igual uma pedra no chão.

Páhpa, você demorou, aconteceu algo? — Conheço bem esses olhinhos de lobinho pidão e o tom de voz fino como uma Cizaray, na mesma hora encaro aqueles dois que se dizem tão maduros e experientes, mas quando querem conseguem ser extremamente curiosos. A reação deles foi simplesmente virar o rosto e ignorar minha presença. "Fofoqueiros".

— Não filhote, não aconteceu absolutamente NADA, o papai só queria um tempo sozinho para pensar. — Embora seja chato, entendo a preocupação deles para onde eu vá, principalmente depois do episódio recente, talvez seja apenas uma paranóia, mas uma hora isso vai passar e eles vão voltar a agir normalmente — na medida do possível.

Deixo Zhari brincando com a vassoura e adentro na tenda, deitando na rede após sentir meu corpo pesar como se estivesse debaixo de toneladas de terra. Nem era hora do almoço e esses sintomas voltaram de novo, eu não devia sentir tanta exaustão só por ter emoções fortes e tenho certeza a culpa é daqueles dois.

Foi desconfortável no início, com Wyllan eu pensei que iria ser violentado, seu rosto se assemelha a uma fera que esteve em batalhas sanguinárias, as inúmeras cicatrizes espalhadas na pele ao lado das tatuagens e aquelas presas, minha primeira impressão é que meu pescoço seria arrancado ali mesmo.

Mas… por mais que sua personalidade seja fechada, por mais que seus olhos me causem pânico… ele… é alguém questionável, aquele jeito sério e bruto me causa pequenos tremores na base do pescoço, levando a me lembrar daqueles dias, porém ainda assim eu o acho… interessante?

E quanto a Deliah, nosso primeiro encontro foi complicado, ele preferiu ficar do meu lado, possivelmente pelo desgosto mútuo da situação e apesar da sua aparência mais "convidativa", eu vi o quão frio ele pode ser, sua expressão sanguinária foi se mostrando a cada batida dada no chão, até que eu não reconhecesse mais aquele rosto "dócil", sobrando apenas um sádico que se esconde detrás de sorrisos falsos.

Os dois me lembram diferentes aspectos de um único lobo, o mesmo que às vezes me atormenta nos piores dias, Moarik. Lembrar dele continua causando calafrios na minha espinha, tão seduzente quanto o último romântico da terra e tão feroz quanto um monstro que atormenta criancinhas. Ainda me recordo daquelas íris douradas deslumbrantes, fui tolo, cai no seu charme e agora cá estou… acabado.

E assim como passei por aquela humilhação há anos atrás, quando nos encontramos no lago, todas essas lembranças arrepiantes vieram à tona e de início, achei que repetiria tudo de novo, ambos tem força para isso se quiserem e até mais. Entretanto eles fizeram o contrário, me deram espaço, me respeitaram, foi a primeira vez que me senti desse jeito. "Será que eu…?".

Será. Sempre é essa pergunta todas as vezes e todas terão a mesma resposta. Sim. Sim, porque eu sou tolo e os tolos são os primeiros a se apaixonarem. Meu coração bate forte sabendo que esses desejos são puramente carnais, eu nem os conheço direito para começo de história e eles já estão me deixando nesse estado deplorável. Na minha cabeça tudo parece dar certo, mas a realidade destrói qualquer fantasia.

Lentamente meu olhar pesa e encaro o lado de fora, eu deveria me perguntar até quando vou sentir isso e tenho o leve pressentimento que isso não vai passar. Esse sentimento incontrolável, essa incapacidade de conseguir seguir em frente sozinho.

— Eu… sou apenas um tolo. — Sinto minha visão embaçar, o rosto ficar úmido aos poucos e nada além de pequenos soluços saírem, assim como desesperadamente quero agarrar meu próprio pescoço e torcer para que tudo acabe de uma vez por todas.

— Pai. — Mal percebi a presença de Zhari na minha frente, estava tão desfocado que nem notei quando ele passou por mim e agora, me encarava como se estivesse tentando decifrar minha angústia.

Fico surpreso quando subitamente Zhari me abraça sem nem dizer nada. Coloco minha mão sobre seu cabelo albino, ouvindo seus pequenos sussurros, mesmo sem entender o significado, um pequeno sorriso ainda surge no meu rosto.

— Também te amo…

InstintoOnde histórias criam vida. Descubra agora