Meu peito doía como se meu coração estivesse explodindo, se regenerando e explodindo de novo e de novo e de novo. Eu sabia que estava tremendo porque meu corpo doía, mas não conseguia ver ele se mexendo, me sentia extremamente quente por dentro, mas meus dedos estavam roxos de tão gelados e mal sentia meus pés tocando o chão pelo frio. Eu precisava que o médico me atendesse naquele momento, mas a porta de sua sala continuava fechada. Uma porta branca de uma sala vazia.
Eu pedi para que Ela falasse com ele, para que me atendesse logo, sabia que a enfermeira havia marcado minha ficha como urgência, mas nada do médico chamar, não conseguia ficar ali, doía de mais. Ficar sentada naquela cadeira no meio do hospital lotado, encarando os corredores brancos e sentindo o cheiro de alvejante estava fazendo tudo doer ainda mais. Minha cabeça fazia barulho demais.
— Ele já vai te atender, precisa esperar.
Ela não soltava minha mão. Nunca. Eu não queria que soltasse, era como se a mão Dela fosse a única coisa que me mantinha aqui. O "aqui" não sei bem onde. Na cadeira, no mundo, na minha própria mente. Muitos "aquis" e todos certos e todos errados. Mas aquela mãozinha pequena e frágil parecia ancorar meu corpo no aqui e a no agora e eu me agarrei naquilo como se minha vida dependesse disso, porque parecia que dependia.
Em algum momento entre a espera e o desespero meu peito doeu tão forte que quase caí da cadeira e senti que meu corpo tinha saído de dentro de mim. Ela e o senhor ao meu lado me ajudaram a voltar com o corpo ereto na cadeira. Eu perguntava se era muito preocupante toda vez que Ela colocava a mão quente no meu peito e Ela dizia que não e que estava tudo bem, mas eu sabia que era mentira porque a mão Dela estava sempre tremendo quando me encostava e o vinco no meio das sobrancelhas ficava cada vez mais fundo. Mas eu queria a mentira, precisava dela. Ultimamente tenho precisado demais da mentira.
Preciso da mentira quando digo que consigo viver um dia por vez. Preciso da mentira quando eu digo que o álcool é só um passatempo e que nunca vai se tornar um refúgio. Preciso da mentira quando digo que a fumaça que sai de cada tragada do cigarro não me faz querer tragar até me intoxicar com ela. Preciso da mentira quando digo que sei sentir as coisas que sinto e que nada disso me sufoca. Preciso da mentira quando digo que finalmente estou confortável dentro de mim mesma. Preciso da mentira quando digo que me sinto bem em casa. Mas, principalmente, preciso da mentira quando me perguntam se me sinto melhor a cada dia e eu respondo com um sonoro sim. Preciso da mentira porque nenhuma dessas coisas é verdade e sinto que sem a mentira as pessoas a minha volta não sabem lidar com a verdade. Nem eu.
Novamente pedi para que Ela falasse com o médico.
— Ele não pode te atender agora, teve que parar um atendimento no meio porque está atendendo uma emergência.
Lembro de ter visto um homem de azul sair correndo da porta branca da sala vazia. Foi quando eu ouvi o primeiro bip bem longe em algum lugar na minha cabeça. Lembro também de ter perguntado para Ela de onde vinha esse som e Dela dizendo que vinha da emergência na outra sala, que eu não devia me preocupar. Outra mentira, mas eu não sabia. Sabia?
A porta ao lado dava para a sala de triagem e de lá saiu uma enfermeira. Não me lembro do rosto dela, mas lembro do cabelo loiro e das vestes brancas. Me lembro de tocar seu braço e pedir por favor que ela me atendesse, pois meu peito não parava de doer e eu sentia meu coração batendo cada vez mais rápido e forte.
A enfermeira entrou na sala de triagem e logo em seguida saiu com um oxímetro e me pediu para colocar o dedo no local indicado, não consegui então Ela fez por mim. Quando o aparelho apontou o número o bip ficou mais alto e repetitivo.
Bip. bip. bip.
— 128?
A enfermeira confirmou e saiu.
128 bpm. Cento e vinte e oito batimentos por minuto. Sites de pesquisa apontam que a quantidade normal de bpm para uma pessoa da minha idade variam entre 73 e 78 bpm.
Poucos minutos depois a enfermeira retornou e me conduziu até um dos leitos do hospital aonde Ela me ajudou a deitar. Olhei para cima e vi o número do leito. 128.
128 bpm.
Leito 128.
Ali deitada encarando o teto branco eu só sabia sentir frio, dor no peito e a mão Dela na minha. Não queria soltar, não podia. O bip voltou novamente e a cada bip eu sentia uma pontada no peito. Quanto mais alto o bip mais forte a pontada.
Foi a primeira vez que pensei sobre morrer. Tive medo.
As cortinas das laterais do leito estavam puxadas então só conseguia ver o que tinha na minha frente: a porta de entrada e saída dos médicos e enfermeiros. Mas conseguia ouvir tudo. Tinha uma mulher em pé ao lado do leito a minha direita, uma das enfermeiras perguntou o que tinha acontecido e ela disse que a menina deitada era sua filha de dezoito anos que estava tendo uma overdose, havia tomado medicamentos na intenção de se matar. A mãe chorava e a menina vomitava sem parar, as vezes ouvia a menina chorando baixinho também.
O bip voltou insuportavelmente alto.
Bip. Bip. Bip. BIP. BIP. BIP. BIP. BIP.
Senti meu coração disparar a cada maldito bip. Ela disse que som vinha do leito a minha esquerda, mas eu tinha certeza de que vinha da minha cabeça, não conseguia ver nada, mas ouvi uma das enfermeiras dizendo que ali havia uma moça tendo uma parada cardíaca.
Foi a segunda vez que pensei sobre morrer. Tive medo de morrer sozinha.
O som parou e foi substituído por rodinhas contra o piso e ouvi uma movimentação no leito ao lado. Levantei um pouco o corpo ficando apoiada nos cotovelos a tempo de ver uma enfermeira correndo com um carrinho que carregava um desfibrilador. Daí vinha o som das rodinhas. Ela foi em direção ao leito da direita e eu voltei a me deitar.
Encarei novamente o teto branco e as luzes das lâmpadas fluorescentes. Ouvi a enfermeira ligando o aparelho, depois ouvi o som da corrente elétrica passando pelos fios até chegar às placas de metal nas pontas e a mesma enfermeira pediu para que todos se afastassem. Não sei como é sentir no corpo a descarga elétrica de um desfibrilador, mas sei exatamente o som que faz. É suave e baixo, um tranco pequeno, inaudível para quem está do outro lado no corredor.
Foi a terceira vez que pensei sobre morrer. Tive esperança.
Tive esperança de não sentir mais a dor no peito, o frio no corpo, de não precisar encarar o teto branco, a luz fluorescente, de não ouvir mais bip nenhum, de tirar o número 128 da mente e, principalmente e mais do que tudo, tive esperança de não precisar mais das mentiras. Eu não queria mais precisar das mentiras.
Quando ouvi o som do metal contra pele, senti meu próprio peito formigar com o barulho da descarga. A enfermeira recarregou a máquina e descarregou na moça novamente. Senti meu peito formigar de novo. Ela repetiu uma terceira vez e eu senti tudo de novo uma terceira vez.
Na última tentativa eu não senti nada.
De repente eu percebi algo incomum desde o momento em que entrei naquele hospital e começou aquela espiral de dor e bip's. O silêncio. Não havia mais bip. Não sentia mais frio também, foi quando notei que Ela tinha soltado minha mão. Na verdade, não via Ela em lugar nenhum.
O tumulto no leito ao lado cessou.
Diante de tanta quietude e do ambiente morboso, fiquei curiosa com o que tinha no leito do lado esquerdo agora tão quieto. Foi então que eu levantei e vi que meu peito não doía mais. Puxei a cortina de uma só vez no mesmo instante que a enfermeira do desfibrilador anunciou:
— Hora do óbito: 1h28.
128 bpm.
Leito 128.
Óbito às 1h28.
Paciente de número 128.
O bip parou para nunca mais voltar. E levou com ele as mentiras. Não precisava mais delas.