Capítulo 2 - Uriel

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CAPÍTULO 2 - Uriel

"Por favor, faça-o entender! Por favor! Deus, por tudo que é mais sagrado, me proteja dele. Me faça melhorar e viver minha vida, por favor".

Mastigo a massa sem gosto de chiclete sentada no parapeito de mais um prédio, muito distante do anterior, observando os carros passando como se fossem de brinquedo. A voz dessa vez é de um homem e seu ponto brilhante está bem perto de mim, creio que pegando poucas ruas chego nele.

Antes que saia do topo do edifício, vejo um dos Três Arcanjos subindo aos céus em uma linha reta extremamente longe, o que é bastante incomum. E, pela brancura das asas enormes, mesmo que a distância julgo ser Gabriel, O Mensageiro.

- Uriel.

- Jesus amado!

Me viro de supetão quando ouço a voz do meu mentor atrás de mim, perto o bastante para arrepiar os pelinhos da nuca.

- Jamais dizemos o nome divino em vão - Seu tom não é zangado como no começo, quando me repreendia constantemente por diversas coisas durante os meus anos longos de treinamento, e sim como algo costumeiro que sentia saudade em falar.

- Peço perdão... - aponto para cima, para onde Gabriel acabara de subir - Por que O Mensageiro esteve aqui?

Zadkiel suspira, sentando-se na borda no lugar que estive e segurando sua longa espada - atualmente sendo apenas um acessório, porém ele fica nervoso se falarem sobre - a frente do corpo alto. As asas, de um cinza bem mais claro que o asfalto e cimento ao nosso redor, farfalham livres atrás de si.

- Não sei. Estou tão cego quanto você. Quando os Arcanjos decidem se reunir ou é por algum problema ou por felicitações.

- Ah, interessante. Enquanto isso não sabemos o que houve e se houve algo, de fato.

Vejo o brilho ficar mais forte pelo canto de olho e Zadkiel acena, indicando que devo encontrá-lo. Desço pelo elevador como ontem, caminhando sem pressa para o ponto e encontrando um hospital. Paro na entrada fitando as diversas pessoas que se preocupam com diferentes situações e parentes em um mesmo lugar, em seguida subo para o quarto que sei que a pessoa pedindo ajuda está.

O corredor se enche de enfermeiros correndo com materiais, levando cadeiras de roda ou acompanhando pacientes em um passeio. Para evitar um espaço tão apertado, me mantenho próxima a parede, escorregando pela porta entreaberta do quarto brilhando e o ponto luminescente se esvai vagarosamente quando chego.

Na cama larga um homem dorme, o mesmo que orava minutos atrás. Sua mente continua barulhenta e pedindo alto o bastante para doer minha cabeça, mas nenhum músculo de seu corpo estirado se mexe.

Chego perto dele e, apoiando as mãos na barra de suporte, quase pulo de susto quando seus olhos azuis abrem e parecem me encarar diretamente. Algumas raras pessoas possuem a capacidade de ver o oculto para todos, incluindo crianças e animais. Entretanto sei que não é o caso quando encosto em sua testa pálida e aí sim noto sua pupila se estreitando ao mirar minha figura, um ponto preto em tanto branco hospitalar.

- O que houve?

- Meu irmão me mata de fome sempre que faço algo errado - Sua voz é interior. Ele não usa a boca para expressar o que está pensando - Sofri um acidente há anos, fiquei em coma por meses e acordei em estado vegetativo. Ele prometeu cuidar de mim, porém formou sua própria família, contratando cuidadores para me acompanhar. No começo do mês não conseguia mais engolir os pedaços grandes de alimento e ele acreditou ser birra minha, proibindo meu tutor de me dar mais do que uma refeição por dia.

Apenas seus olhos piscavam para mim, recheados de lágrimas que se recusam a cair.

- Então tive uma crise ansiosa e me trouxeram para cá, mas não foi a primeira vez... ele sempre faz algo parecido, não entende o que eu preciso, o que me machuca.

Assinto, já retirando a mão dele.

- Vou fazê-lo entender, pode ficar tranquilo.

Volta a fechar as pálpebras cansadas, cessando as orações. Espero ao seu lado até que o irmão aparece, tarde da noite, falando ao telefone e sentando na poltrona no canto do cômodo, sem ao menos se preocupar em dar um oi para o homem acamado.

Puxo ar para os pulmões pensando no que faria ele entender. Notando que tira uma garrafa com um líquido já no fim e, ouvindo-o falar para o outro lado da linha que o chá diário está acabando, sorrio.

Ele o toma todo dia...

Me aproximo, ficando frente a frente com o homem e pondo a mão sobre sua barriga e a outra na garrafa posta sobre seu colo. Faço o chá ser algo que mexerá com seu estômago e fígado, prejudicando em larga escala seus órgãos. O resto que reside na garrafa se altera abaixo da minha palma e vejo suas feições se contorcerem de dor, crescendo aos poucos para ser o mais natural possível.

Sua língua incha por "uma reação" indicativa do desgaste físico (nem sempre sou criativa) e seus olhos se arregalam tentando chamar alguém. Larga o celular e corre para o corredor, sem nem ao menos saber que me empurrou para o lado na pressa.

Vejo quando cai no chão do corredor mais vazio e alguns enfermeiros se juntam ao seu redor para tentar ajudá-lo.

Na porta, me viro para o irmão que ficou, sorrindo para o semblante calmo que parece ter.

- Uriel!

Mas que...

Fecho o sorriso na hora, ouvindo a voz do meu criador recheada de reprimenda e desapontamento. Meus lábios subiram sem que eu pudesse esconder.

Espero algumas horas na porta do cômodo ao lado, sabendo que o homem que apliquei a justiça foi internado. O médico que o atendia saiu, parando na entrada para explicar à esposa do enfermo o porquê da internação.

- Seu marido contraiu uma infecção seríssima, precisará ficar aqui até que se estabilize seu quadro. Infelizmente a língua foi afetada, então não se assuste por ele não responder a senhora. Além de tudo, como o fígado e estômago estão bem prejudicados, apenas alimentos líquidos serão administrados e através de sonda gástrica. Prevejo que ficará conosco por um bom tempo... - explica, tentando ser o mais sensível possível.

- Mas ele estava bem até hoje, estávamos conversando no telefone quando tudo aconteceu!

Apertando o ombro da pequena mulher em consolo, ele se prepara para sair e dar espaço para que ela entre.

- Eu sei, foi um caso bem silencioso. Normalmente esse tipo de situação progride com sinais bem fáceis de identificar, contudo não foi o caso. Sinto muito.

Uno as mãos atrás das costas e volto para a entrada, dando a volta em direção ao lugar que as ambulâncias ficam aguardando emergências. No caminho para a saída, faço carinho em um cachorrinho que corre para o colo de um homem alto vestido de socorrista, todo alegre. Ouço o nome dele ser gritado, mas já estou do outro lado da rua quando responde.

Há caminho de uma biblioteca que eu geralmente fico quando enjoo dos topos de prédios, sinto uma presença ao meu lado e cerro os olhos já me preparando.

- Eu vou enviar você de volta para os céus um dia.

Quando a balança pendeOnde histórias criam vida. Descubra agora