DANGAL WEEK COMEÇOU VAMBORAAA!!
boa leitura! :D· palavras: 1.173.
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“Pra ser sincero, não espero de você mais do que educação.”
Gaspar mal conseguia dormir.
Já era alta madrugada. Um sentimento de desconforto atrapalhava sua tentativa de deitar a cabeça no travesseiro e descansar. Todas as vezes que fechava os olhos, parecia estar entrando de vez num pesadelo – afinal, era pior ter um sonho ruim ou ficar acordado a noite inteira?
Se sentou na cama, derrotado pela inquietude. Respirou fundo, seus olhos escaneando o quarto escuro, procurando algo que pudesse distraí-lo até que tivesse mais sono. Livros de cabeceira e algumas velas apagadas eram tudo que o feixe de luz da janela iluminava. Impaciente, levantou e queimou uma delas. Era bem melhor do que ligar as lâmpadas do quarto, essas eram fortes e o denunciariam facilmente.
Ficou em pé assistindo à chama dançar tão inquieta quanto ele. Gaspar não era de se aventurar pelos corredores do orfanato nesse horário importuno, mas essa noite, estava preso e precisava dar um jeito de se libertar. Agarrou o castiçal como se fosse fugir de si, deu passos silenciosos até a porta e a destrancou. Gostaria que isso fizesse com que ele se sentisse corajoso, ou como se estivesse fazendo a coisa certa, mas mais parecia o oposto. Por que tinha tanto medo de casa?
Aquele lugar tinha uma névoa desconexa na altura dos tornozelos, independentemente de ser verão ou inverno. Suas paredes eram geladas por dentro, mesmo que alguns corredores fossem preenchidos por quadros ou figuras religiosas acompanhadas das inescapáveis velas. Caminhava devagar, os passos mais leves que a própria respiração, porque ali era quieto até demais durante a madrugada.
Não sabia ao certo o que esperava quando decidiu fazer isso. Talvez quisesse só respirar um pouco, mas o ar era tão frio que o incomodava o nariz. Andava com uma das mãos se arrastando pelas ásperas paredes, como um senso de direção. E ainda assim, ia sem rumo. Era tudo tão quieto. Terrivelmente quieto.
Podia ouvir sua respiração, seu coração, seus próprios pensamentos. Parou em frente à escada e daria meia-volta, se não escutasse um som abafado daquela direção. Apesar de não ser um som necessariamente assustador, Gaspar quase deixou o castiçal cair ao chão. Era uma música distorcida, sem fundo de tempo, acordes soltos tocados sem esforço. E vinha do telhado.
Um pouco de senso voltou a ele. Gal e Pedro faziam isso o tempo todo. Revirou os olhos, indignado por ter se assustado com algo tão idiota.
Espera.
Já fez umas duas, três semanas desde que Pedro foi adotado. Gaspar jurava que Gal não tinha ido ao telhado nenhuma vez desde então. Apertou o passo e subiu os degraus de uma vez, com uma ponta de curiosidade e preocupação. A cena não podia ser diferente.
Gal tinha lá seus quinze anos. Um cabelo comprido, fios bagunçados pelo vento que batia contra o rosto. Brisa essa que era fria, mas ainda conseguia ser menos gélida que o ar repressivo do lado de dentro. E aquela era a guitarra que ganhou de Arnaldo Fritz há pouco mais de um ano. Mesmo a melodia sendo lenta, a tocava como se feito aulas profissionais a vida toda, sem se esforçar para repetir o mesmo solo até acertar. Gaspar não enxergava seu rosto dali, já que ele se virava para a escura paisagem como se fosse sua plateia, além dos cabelos cobrirem sua feição quando se curvava para alcançar alguma nota com mais vontade.
Não queria ser visto, por motivo que fosse. Aproveitaria o show dali mesmo, sem atrapalhar a concentração do garoto. Estava gostando mais do que esperava. Se chegasse um pouco mais perto, saberia se o que ouvia naquela voz era uma canto tímido ou grunhidos de cansaço.
A verdade é que quando estava desacompanhado, seu jeito era outro. As crianças tinham nele uma imagem de irmão mais velho, destemido, cuidadoso, enquanto ele busca apenas liberdade. E se sentiria livre quando tocasse além da gospel. Por agora, Dragões Metálicos de madrugada, no telhado do orfanato, escondido do resto do mundo, não passava de uma falsa sensação do distante “livre-alvedrio”¹.
Os dedos vinham, deslizando pelas casas numa distorção prazerosa que marcava fim. Arqueou as costas para trás, suspirando aliviado, recuperando todo o fôlego perdido. Gaspar não conseguia tirar os olhos daquilo, secretamente impressionado e fascinado com a energia melancólica presente ali. Chegou mais perto, não se escondendo mais da vista do amador guitarrista.
- Por que parou? – Perguntou com timidez, se sentando à frente dele.
- O que você faz acordado essa hora? – Sorriu arrumando os fios de cabelo desordenados. – Você não é assim.
Gaspar preferiu não comentar sobre os olhos vermelhos de Gal.
- Não consigo dormir.
- Você escolheu uma companhia ruim. Achei que não quisesse mais falar comigo depois do que rolou. – Dedilhou as cordas devagar, mantendo as mãos ocupadas. Se referia ao pequeno acidente que aconteceu no último aniversário de Gaspar, em que descobriram sem querer a alergia que tinha a amendoim.
- Não foi culpa sua, você não sabia. E nem eu. – Relaxou as costas, abrindo um sorriso amigável, por agora achar graça daquela situação.
- Mas concordamos que ia ser melhor para você. Então, a não ser que esteja querendo estragar sua vida um pouquinho, não sei o que ‘tá fazendo aqui.
- Eu só ouvi você e fiquei curioso. Não sabia que dava para tocar assim. Achei que só sabia aquelas músicas barulhentas e esquisitas.
- Você é esquisito.
Gal sempre teve atenção em não tocar alto demais para não ser pego. Se o orfanato não fosse tão silencioso quanto um quarto branco, Gaspar não teria escutado os sigilosos acordes. Talvez tivesse sido a combinação de coisas que os forçaram a conversar aquela madrugada. No fim das contas, por muita insistência, o moreno acabou tocando mais uma ou duas músicas calmas que se lembrava antes de sentarem lado a lado, encarando as estrelas. Tinham mesmo combinado que seria melhor ficarem afastados, mas quem podiam enganar? As provocações mútuas faziam parte do dia a dia de ambos, e não sabiam bem lidar com a falta delas. Mas ninguém precisava saber do que acontecia entre as duas e as quatro da manhã.
Gaspar descansou a cabeça no ombro de Gal. Fechou os olhos, já não mais inquieto pela insônia, e relaxou os pensamentos. Ninguém precisava saber.
Gal acariciou o cabelo loiro com a mesma delicadeza que tinha quando fazia “tap”². Ninguém precisava saber.
Os dois tinham uma irreconhecível vontade de ficarem mais próximos do que já estavam, só não sabiam expressá-la. Quando Gaspar abriu os olhos novamente, decidido a voltar para a cama por essa noite, não hesitou em se despedir com um beijo envergonhado na bochecha de Gal. “Obrigado por me distrair hoje.”
O que queria mesmo ter dito era um obrigado por ter cuidado dele aquela madrugada, mas não tinha certeza se soava bem. Gal observou o garoto se afastar em passos sonolentos, sem dizer uma palavra. Não esperavam nada além de uma amizade desfeita, mas ambos acabaram indo dormir pensando naquele curto instante de toque.
“Um dia desses, nesses encontros casuais, talvez a gente se encontre, talvez a gente encontre explicação.”
Notas:¹ Livre-arbítrio.
² Tocar as cordas da guitarra com a ponta dos dedos.
É, gente. Tive que enfiar o Gal tocando guitarra de alguma forma desde que fizeram um AU baseado num tweet meu sobre isso.
Obrigado por ler, a week tá só começando!