São Tadeu

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São Tadeu sempre foi uma cidade parada e com pouco mais de cinquenta mil habitantes, nesse fim de mundo, todo mundo conhece todo mundo. Porém, nos últimos três anos, a cidade se inovou e se juntou com a cidade Jardim de Santa Egemira, uma cidade muito maior e famosa por seu ensino espetacular, e com isso, é uma das que mais recebem intercambistas.
   De lá pra cá, São Tadeu virou ícone, em sétimo lugar do melhor ensino do país, recebemos todo ano alunos novos, bolsistas, pessoas de outros países, e então, minha vida antes bem calma, se conturbou em instantes. Eu sou representante do conselho estudantil, então precisava todo dia registrar um aluno novo naquela maldita escola, o Colégio Tadeu Fartinni.
    Só de lembrar disso assim que levanto da cama, sinto meu estômago embrulhar, me sento e viro as pernas para o lado de fora do colchão, levanto e me espreguiço. Coloco o uniforme e a calça, já que eu me recuso a usar a saia feminina daquela escola esquisita. Visto meu All Star azul e jogo a mochila nas costas, passo no banheiro e dou alguns tapinhas no meu cabelo para que fique em posição.
    Saio de casa e caminho pelas ruas e becos, em frente a moradas e suas calçadas, crianças e outros jovens indo pra escola, parecíamos idiotas indo todos numa direção só, mas pela minha sorte, eu conhecia um atalho para pegar o ônibus. São Tadeu é bem próxima da cidade do Rio, cerca de 24km, então o ônibus era mais que necessário, mas de vez em quando, eu descia os morros de skate pra sentir o vento no corpo, mas hoje eu estava atrasada, não tinha o privilégio de escolher. Subo dois becos, e chego em um ponto de ônibus vazio, já que o Sol nem mesmo tinha dado bom dia para nós, o ônibus passa e sou uma das primeiras ali, com exceção de uma senhorinha e um garoto com fone no máximo. Sento atrás dele, encostada na janela.
    Suspiro e pego meu celular, tinha mensagem do meu único amigo, notificação de jogos e do aplicativo da escola. Desligo o celular e fecho o olho, para descansar. Só o abro quando o primeiro raio de sol toca minha pálpebra, a fazendo abrir de leve, já estávamos no rio, passando perto do Cristo Redentor, que ao nascer do sol, tinha um reflexo dourado e laranja ultraforte, o observo e sinto minha boca se mexer num sorrisinho.
    Não muito tempo depois, o ônibus para em frente ao meu colégio, eu e mais vários jovens descemos e entramos, eu vou para os armários e para o meu, número 017. Danilo Parla, meu melhor amigo, para ao meu lado e sorri. Antes mesmo de virar estampo um sorriso no rosto e rio baixo.
    — O que quer? — vejo de canto de olho ele dar de ombros.
    — Nada, não posso cumprimentar a representante, oh, oh, já sei, vou levar advertência?
    Balanço a cabeça em discordância e rio.
    — Se continuar enchendo meu saco, talvez, Dan. — ele dá aquele sorriso idiota dele e enfia as mãos no bolso, quando me viro em sua direção, observo que não usava a camiseta do colégio — Bom, mas vai levar advertência por essa vestimenta aí.
    — Oxe, a novata da turma 'A' também está sem uniforme. — arqueio uma sobrancelha, novata? Que novata?
    — Bom, ela é novata. Gente nova nem sempre tem o uniforme, não seja tão rigoroso.
    Fecho meu armário e enfio a chave no bolso, caminhando pelo corredor e ouvindo os passos de Danilo vindo atrás de mim, entro na minha sala, que ainda não tinha nem metade de sua habitual quantidade de alunos. Me ajeito na primeira carteira e Dan se senta atrás de mim, arrumando seus materiais.
    — Teve dever? — ele diz, e em um suspiro, concordo.
    — Páginas 506, 508, 509, 522 e 523. — ele bufa, já sabia que não faria só por essa pequena reação — Posso fazer pra você no intervalo.
    — Já te disse que te amo?
    — Sim, já. Não precisa falar de novo. — ele ri.

  A professora não demora muito a entrar em sala com o resto da turma. Eu sempre fui uma pessoa que gosta de estudar, nunca tive preguiça ou desânimo, e acho que isso que me levou a ser a representante, minhas notas não são baixas, pelo contrário, e eu sigo as regras, mesmo que as vezes eu as ache desnecessárias, porém, isso também me deu a fama de ser chata, e o bullying se formou recorrente. Não minto que tenho cabelo curto, bem, bem curto, e que antes ja fora raspado na lateral, e as garotas as vezes insistem em me tratar no masculino por isso, é completamente irritante, mas bom, o importante é que ainda sou representante.
   Isso também me levou a só ter um amigo de verdade, Danilo. Esse garoto basicamente nasceu grudado em mim, mesmo ele sendo repetente e rendo 1,89 de altura, ele é uma criança, e muitas vezes eu, uma anã de 1,59, quem o protege, até por que, a vida dele é muito complicada, dentro e fora da escola.
     Absorta nos meus pensamentos, mal vejo o sinal tocar, e só "acordo" quando Dan põe a apostila na minha mesa e acena, saindo de sala. Sim, o dever, claro, como pude esquecer? Levanto e pego meu estojo, caminhando para fora de sala e indo até o pátio, sento na grama e abro as páginas da tarefa. Pego um lápis e começo a escrever, devagar e sempre, é o que dizem, não é?
     Além do mais, eu até que gosto de escrever, fazer esse dever era moleza e não me atrapalhava em nada, na verdade. Era melhor do que sentar sozinha e ficar mexendo no celular. Mas não consigo me concentrar quando escuto um burburinho e viro o rosto para identificar de onde vinha, uma garota que parecia ser de estatura média, cabelo preto e liso estava cercada de outras garotas e um ou outro menino. Fecho a apostila, a largando na grama, e levanto, encostando em uma árvore, cruzando os braços, eles pareciam muito curiosos nela, e eu não a reconhecia, talvez ela fosse a novata do terceiro A? Não sei dizer, minha mente está muito bagunçada para manter uma memória boa das coisas.
    Uma das garotas aponta pra mim e acabo franzindo as sobrancelhas, a menina sorri e então começa a se aproximar, me desencosto da árvore e a observo mais detalhadamente, de cima a baixo e de baixo a cima. Ela tinha um piercing de argolinha na sobrancelha, combinava com o meu...
    — Oi, disseram-me que tu que é a representante do conselho. — ela sorri.
    — Sim... Sim, sou sim. Por quê? — ela põe uma mão na cintura e dá de ombros.
    — Sou nova, cheguei ontem... Nem sei de onde fica as salas dos miúdos, ou da minha malta ainda. — Malta? Miúdos? Que sotaque é esse?
    — Sim... Claro... Bom, depois das aulas posso fazer um tour pra você.
    — Obrigada, rapariga. — estreito os olhos.
    Ela caminha e reviro os olhos, quem ela pensa que é pra me chamar de rapariga desse jeito? Esquisita.

Sento e volto a fazer o dever para Danilo, o garoto que nem vi pelo pátio. Ele geralmente vinha me ver durante os intervalos, mas talvez estivesse muito ocupado com seus amigos, ou namoradinhas. Continuo rabiscando o caderno até o sino do intervalo tocar, bocejo e levanto, caminhando até minha sala e sentando. Não demora muito até Dominique entrar com um sorriso no rosto e sentar perto de mim, o passo o caderno e ele agradece silenciosamente. Me viro e ele me olha enquanto guarda a apostila.
     — Sim, Mi?
     — Aí Camilo, sabe a novata do 'A'? — ele acena com a cabeça — De onde essa menina é? Ela é mó esquisita, papo reto.
     — Ah, não sei. Ouvi falar de umas garotas que a mina é portuguesa.
     — Tipo, Portugal?
     — Direto do Porto. — faço uma expressão confusa, mas sorridente.
      — Então a gata é burguesa, o que ela estaria fazendo nesse fim de mundo do Rio, numa escolinha pública?
      — De novo a burguesia querendo tomar dos pobres. — ele zomba e bufa — Mas que é bonita é, viu o corpão?
   Chuto sua canela e Dan rosna de dor, segurando o local atingido.
    — Já te falei pra não sair falando do corpo dos outros, mano. Cê é burro ou se faz? — ele sussura uma desculpa aborrecida — Tem horas que questiono minha amizade contigo, moleque.
    Ele revira os olhos e olha pro pessoal entrando na sala, para me ignorar. O encaro por mais alguns segundos e suspiro, sentando corretamente para estudar. Com o passar da aula, escuto ele falando com mais alguns garotos sobre a tal burguesinha, mas tento ignorar pelo momento, ao tocar do sinal, junto minhas coisas e saio as pressas para não falar com ele.
     Quando piso fora da sala, uma mão segura meu pulso e puxo no susto, olho a burguesa e suspiro, ah.
     — Oi.
     — Ei, me prometeu apresentar a escola.
     — Você nem se apresentou pra mim. — arqueio uma sobrancelha.
     — Ah, perdoa-me... Sou Lisa Torres... Tu és...?
     — Mirelly Marquez, posso te perguntar um bagulho?
     — Claro. — ela sorri.
   — Tu é portuguesa, é? — ela sorri.
   — Sou... Sabia como? — dou de ombros.
   — Um chute só.
   Começo a caminhar e a vejo vir atrás, como um cachorrinho abandonado. Rio baixo da comparação e continuo caminhando.
     — Esse andar aqui é só das salas dos adolescentes, no andar de cima, dos pequenos. Agora, — desço alguns lances de escada — é o pátio, secretaria e entrada pra quadra, tá?
     — Mhum.
     Caminho apontando os lugares, e desço na quadra, olhando os meninos jogarem futebol.
     — E bem, aqui é a quadra poliesportiva. Não tem muito mais o que mostrar, não. — apoio nos arames e ela me olha e olha os meninos.
     — Teu país tem absurdos gajos bonitos, não? — ela sorri e me olha, porém, dou de ombros.
    — Sei lá, eu não acho, não. — ela parece confusa.
    — Não?
    — Eu gosto é de mulher, Lisa.
    Ela fica em silêncio e concorda. Agradeço por ela não ter aberto a boca para falar besteira, já que era isso que eu ouvia quando falava sobre minha escolha sexual, besteira e gente me sexualizando. Ou pior, "quem é o homem da relação, Mi?", minha benga é o homem da relação. Estava tão concentrada em mim e no jogo, que não vejo a burguesinha me chamando.
     — Mirelly? Mirelly?? — a olho.
     — Diga aí.
     — Consegue ensinar-me o caminho pro autocarro? Ouvi dumas raparigas que tu sabe as paragens deles.
      — O que é autocarro? — ela me encara incrédula — Na moral, to falando na moral, né' zoeira não.
      — Autocarro, aquele veículo que tu vens pra escola de manhã.
      — O busão? Ônibus? — ela dá de ombros — A porra dum carrão amarelo gigantão.
      — É, autocarro. — suspiro, é, linguagem vai ser um problema com essa burguesinha.
    — Suave, mostro sim. — começo a andar e ela vem atrás, saímos da escola e ela arfa.
    Continuo andando calmamente pelos quarteirões, mas quando viro, a vejo a mais de duas ruas de distância, acabo franzindo as sobrancelhas e desço até ela a passos rápidos.
   
     — Qual foi? — ela me olha, estava vermelha.
    — Teu país tens altas temperaturas, tenho-me a impressão de que estou a pegar fogo. — suspiro e cruzo os bracos.
    — Tu vem logo pro RJ' e quer que esteja frio? Gata, se tu queria neve fosse pra área dos guri, lá no Sul, pô.
    — Só consegui passar pro seu estado... — Ela respira fundo e se apoia na parede. Cruzo os braços, sem paciência — Como tu faz desporto neste calor?
   — A hora que tu falar português eu te respondo, vamos. — a puxo pelo braço.
   — Perdão, mas minha língua é original, tu és quem fala de forma abrasileirada. — reviro os olhos, que menina insuportável.

    Subimos e sento no ponto de ônibus, ela senta ao meu lado. Ela me olha e pego meu celular, entrando em um joguinho.
     — Pois... Qual tua freguesia? — a olho. — Teu bairro.
     — Cerejeira 4, e o teu? — ela sorri.
     — Cerejeira 1, estamo-nos a três freguesias de distância. — Que maravilha, tudo o que eu menos queria.
      — Ah, que massa.
      — Massa?
      — É uma expressão, tipo... Fixe.
      — Fixe... Tu és massa, Mirelly.

    Suspiro e dou de ombros, como se estivesse agradecendo.

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