- Por que você tem alergia à vida? – indagou à sua imagem refletida em um espelho.
O dia em seu interior estava nublado, com o vento forte sibilando em seu cérebro pensamentos passados e preocupações futuras, o princípio de uma tempestade formava-se e nada poderia ser feito, mas ele estava ali. Andava nas ruas desregulares de asfalto umbroso, algumas sinuosas e outras retas, acompanhavam as alturas de montes e dos vales e a profundidade das depressões, porém sempre era um espectador, um espectador no sentido mais vívido da palavra. Ele sentia tudo, enxergava além, mas não o cenário completo.
- Estou esgotado. Não te suporto e estou cansado de viver sob tanta sensibilidade – confessou àquela imagem espelhada. – Esta é a experiência de ser um humano? Estou fadado a esta convivência para o resto de minha vida?
Olhou para o fundo de seus olhos negros refletidos e não pôde aturar todo aquele julgamento silencioso. Aquelas linhas faciais, aqueles pelos, aqueles lábios e aquela pele eram danosos a si próprio. A expressão era esmagadora. Suspirou.
- Tenho tanta coisa para fazer, tanta coisa para saber e tanta coisa para viver – comentou, sem esperança. – E para quê? Por que devo possuir essas coisas que a maioria tem, desejar o que eles querem? Não quero isso para mim. Mereço mais.
Riu. Desviou o seu olhar para o chão.
- Engraçado, não? – encarou o reflexo de seu peito, pois não podia olhar o reflexo de seus olhos. – Desejo o meu fim, fantasio com ele como se fosse um amante, mas, ainda assim, almejo o conforto da minha vivência. Sou complicado demais.
Toda a energia gasta não estava sendo reposta e era estressante. Eram vários setores internos precisando de atenção, de reparo ou de assistência, diariamente. Quando poderia descansar? Por mais confortável que a vida de dentro fosse, a vida externa precisava continuar, embora nunca parasse. Apenas ficava monótona em seus afazeres – não era ruim, somente não realizava o seu futuro desejado. Ali fora era selvagem, pois o tempo não era o suficiente para viver.
- Adoraria não ter esta consciência, ter estas experiências, ter esta complexidade – olhou para baixo, para nenhum ponto específico -, talvez assim poderia viver minimamente bem.
Aparentemente, ser complexo seria o seu novo "eu", sempre transformando. Por isso não desejava mais descobrir quem era em seu todo, mas somente viver seria o suficiente. Mas o que seria viver? Sentir tudo o que o ser humano sente? Tentar perseguir o tempo como se fosse a única coisa que valesse a pena? O que era importante para si? Não sabia ao certo o que era importante para si. Sentiu vergonha por não saber. Quando foi a sua última mudança que a distância aumentou ainda mais o contato entre si? Todas aquelas emoções e sensações...exaustivo!
- Eu não gostaria de viver sem o que sou. É difícil, mas é profundo e isso me faz bem ao mesmo tempo que me faz estressado – concluiu e sorriu com os seus lábios. – Não posso renunciar a tudo por falta de uma perspectiva mais ampla.
- Você deveria ser gentil consigo mesmo – uma voz anunciou sem rodeios.
O som veio atrás de si, então olhou em direção ao espelho como uma forma de conseguir saber quem estava ali. Cenho franzido. Poucos segundos depois, quando estava quase decidindo ignorar a interrupção, surge um ser como si mesmo, com todas as imperfeições e perfeições, atencioso aos mínimos detalhes da aparência, no entanto, estava sorrindo simpaticamente. Este fato o deixou irritado, mas logo deu um jeito de esconder esse sentimento para saciar a sua curiosidade.
- Quem é você?
- Sou uma partícula infinitesimal sua, dentro de você, quase morta – respondeu, ainda mantendo a simpatia.

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𝓕𝓻𝓪𝓰𝓶𝓮𝓷𝓽𝓸𝓼 𝓭𝓮 𝓾𝓶 𝓓𝓮𝓼𝓹𝓮𝓻𝓽𝓪𝓻
РазноеEm "Fragmentos de um Despertar", somos conduzidos pela jornada de um personagem envolto em uma profunda busca por significado e autodescoberta. Após enfrentar uma crise existencial avassaladora, ele se vê diante de um desafio colossal: reconciliar-s...