4. As Pessoas Mentem, Sempre!

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O Andarilho acordou Ústia mau o sol havia nascido. Eles tinham que aproveitar o dia ao máximo, pois seria uma longa viagem - por volta de três dias - se O Andarilho quisesse acabar logo com essa história de levar pessoas para a cidade, para poder voltar a sua antiga rotina, teria que realizar essa viagem evitando perdas de tempo.

Ele pegou todos os seus pertences (os que havia utilizado na noite anterior) e colocou tudo de volta nos sacos amarrados no Camelo. Ele nem teve tempo de montar a nova base temporária. A única coisa que fizera foi acender uma fogueira e armar uma tenda rápida. Normalmente ele teria procurado por galhos em oásis, e com a adição de uma lona especial que criou há muitos anos teria construído a sua base.

Essa lona era feita com um material especial: uma mistura de couro de animais com tecido natural feito a partir de plantas do Deserto. Ele com a lona, que por sinal não era a única (ele fazia várias lonas de uma vez e as guardava para futuras bases), iria colocá-la por cima de uma armação feita com galhos e pedras, tudo isso colado por uma mistura grudenta e resistente feita de: baba de camelo, água, folhas esmagadas e areia.

Mas nesse dia ele não fez isso. Nem procurou por oásis (ele não precisava procurar, ele já sabia onde todos os oásis do Deserto ficavam) nem montou nada. Nem mesmo o esqueleto da base. Simplesmente pegou na lona e amarrou duas pontas em um graveto fino que achou no caminho, e as outras duas pontas do lado oposto amarrou no Camelo. E deixou Ústia dormir em baixo da tenda, protegida, enquanto ele dormiu a céu aberto. (Essa parece uma ação muito mais bondosa do que realmente foi. Ele já estava acostumado a dormir descoberto, e preferia não ficar encurralado contra o corpo do Camelo durante a noite. Não com uma quase desconhecida ao seu lado).

O Andarilho e Ústia saíram ao nascer do sol e seguiram em linha reta ao longo do dia. Ústia foi montada a frente do Camelo, por questões de segurança.

Eles estavam nesse momento seguindo em direção a Jofériko. Seguindo por uma rota conhecida pelo Andarilho. Era um rota segura e distante da estrada principal naquela localização. (Haviam algumas estradas gigantes que ligavam as cidades do deserto entre si. Mas elas eram muito movimentadas e tumultuadas, algo que O Andarilho evitava a todos os custos).

A rota que percorriam não era uma estrada realmente. Era apenas um caminho que O Andarilho sabia que era seguro, e era também uma reta em direção ao Império. Esse caminho era muito diferente das grandes estradas do deserto; elas eram muito largas, e tinham barreiras laterais para evitar que os fortes ventos jogassem areia nelas. Tinham também placas sinalizando em que direção seguir para chegar em locais específicos, e outras indicando onde eram as faixas de montarias e onde eram as faixas de veículos: existiam alguns veículos motorizados no bioma desértico, eram raros isso é certo, mas compensavam a sua dificuldade de encontrar e de construir com a sua incrível eficácia e utilidade ao reduzir o tempo de locomoção.

Como o único meio de transporte que O Andarilho possuía era o Camelo, a viagem demoraria bastante tempo. Ainda mais andando no meio do deserto, tendo que diversas vezes subir até ao topo de uma duna, só para descer depois. Mas a área do deserto em que estavam agora não tinha muitas dunas, tinha principalmente planícies de arenito duro por extensos quilômetros.

Depois de várias horas seguindo incessantemente em direção à Jofériko, O Andarilho decidiu que era uma boa hora para parar para descansar. Desmontou do dorso do Camelo e ofereceu ajuda a Ústia, que recusou e desceu por conta própria. Com seu machado de ferro, cortou um cacto pela base; extraiu a água do mesmo e com a matéria obtida ao cacto, montou uma fogueira - pode parecer estranho; fazer uma fogueira com um cacto, mas alguns cactos do Deserto Lamurioso eram extremamente inflamáveis, claro, depois de extrair a água de dentro - e com a fogueira pronta colocou a água para ferver. Também posicionou sobre a fogueira três coelhos de pluma leve que abatera ao longo do percurso. O Camelo, apenas precisa de pouco água por muito tempo, e comida na mesma quantidade. Porém, já fazia um tempo relativamente elevado desde a última vez que O Andarilho havia alimentado o seu Camelo, então pegou em uma de duas bolsas acopladas no Camelo e tirou de dentro dela um chumaço de feno e deu ao animal. Depois de ter alimentado o seu querido companheiro de viagem se sentou perto de sua nova parceira temporária; Ústia, para ver se conseguia descobrir mais coisas a respeito dr sua vida: tentar novamente extrair a verdade dela, saber qual foi realmente o motivo para ela ter ido parar no meio do deserto. Ele não tinha a menor sombra de dúvidas de que ela estava mentindo, só não sabia o porquê.

- Então Ústia... me conta de novo a história de como você chegou no meio do deserto. - pediu O Andarilho à Ústia, com o intuito de levá-la a cometer algum erro; talvez alterar alguma coisas significativa na história ou talvez demonstrar de alguma forma que esqueceu a história (o que poderia indicar que era inventada) - Ústia pareceu incomodada com o pedido, mas acabou por contar de novo. E para a surpresa do Andarilho, a história foi exatamente a mesma. E "exatamente" aqui significa LITERALMENTE o mesmo que ela contou da primeira vez. Mas isso não descartava a hipótese dela estar mentindo, muito pelo contrário, apenas reforçava a suposição do Andarilho: ninguém que está falando a verdade, quando pedido para repetir a história, irá contá-la com exatamente as mesmas palavras. Se ela o fez, e com certeza não foi por mera coincidência, então ela havia decorado aquilo.

O Andarilho apenas ignorou os sinais. Ficaram em silêncio durante o resto da refeição; o clima tenso que surgira após esse evento ficou evidente - Ústia rapidamente percebeu que deveria ter cometido algum erro durante a sua narrativa e, entrando em sintonia com o ar da situação, ficou irrequieta, constantemente ajustando a posição em que estava sentada - Pronto. Era isso. Somente isso, que O Andarilho precisava para ter certeza de que ela estava mentindo. Mas não valia a pena, ele apenas iria continuar seguindo a viagem até o seu destino, entregar Ústia em segurança em Jofériko, e velozmente voltar a sua antiga vida; pacífica, solitária, nômade... tudo aquilo que ele desejava e ansiava.

E isso foi feito, sem mais hesitações ou questões. Demoraram ainda mais ou menos dois dias até chegar nas fronteiras dos subúrbios abandonados de Jofériko. (Jofériko era um império em ascensão, mas mesmo assim tinha muitas zonas nos arredores que estava esvaziando. Isso devido ao novo programa de centralização do império - o governo planejava concentrar toda a população no centro da cidade/império para poder aumentar suas forças inquisitivas perto das fronteiras). Talvez com o intuito de expandir seus territórios O Andarilho não sabia, ainda que procurasse descobrir: se fosse mesmo por motivos expansionistas ele poderia estar em perigo!

Saiu das costas do Camelo e estendeu a mão para Ústia para ajudá-la descer. Quando ela não aceitou a ajuda na hora, começou a se afastar, porém, parou quando ela estendeu a mão de volta. Ajudou ela a descer e se despediu:

- Adeus, Ústia. Espero que consiga se virar sozinha na cidade!

- Obrigada, "Górfez". Agradeço muito a ajuda, não vou esquecer. Um dia irei retribuir. De alguma forma. Não imprima como, mas irei. - O Andarilho rejeitou a oferta (nunca ajudara ninguém, mas com certeza não o cobraria).

Ústia não insistiu e pegou suas coisas seguindo em direção à cidade. Deu alguns passos mas parou de andar. E assim ficou durante uns dois minutos. Quando finalmente voltou a se mexer, virou para trás, olhou para O Andarilho nos olhos e falou:

- Me desculpa... eu não posso voltar. Não sozinha - O Andarilho não entendeu o que Ústia queria dizer, mas não gostou do rumo que aquilo estava tomando.

- Eu menti! Eu não vim parar no meio do deserto por ter protegido uma garotinha.

O Andarilho SolitárioOnde histórias criam vida. Descubra agora