AS CARTAS QUE NÃO TE ESCREVI

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Dedicatória:
Ao meu primeiro amor, com afeto.
De sua admiradora secreta.

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Amar não é sobre dor, tampouco é sobre não doer. Principalmente quando o amor em discussão é o amor juvenil.

Em uma casa pequena de portão enferrujado e paredes com reboco por fazer, residia uma criança com quase onze anos de idade, idade essa, onde os sentimentos mais puros começam a aflorar. Sua franjinha acima das sobrancelhas estavam sempre limitando sua visão, mas ela insistia em parecer uma personagem das animações que faziam sucesso no século do início de sua vida. Os olhos pequenos da mocinha eram comuns e brilhantes, quase sempre voltados para o horizonte, onde ela criava e recriava os contos de fadas em devaneios de criança.

          Apesar dos pequenos olhos e da franja atarantada, seus sentidos não titubearam quando na manhã da aula de reforço do bairro, pela primeira vez seu coraçãozinho rodopiou no peito ao ver dentro da sala de estudos o garoto mais radiante que já conhecera. As bochechas dele eram rechonchudas e repletas de marquinhas cor de rosa, sinais do início de sua pré-adolescência. Seus cabelos mais pareciam fios de ouro aos olhos dela, assim como os dois sinais na bochecha do garoto eram perfeitos demais para serem comuns, ela decidiu em seu coração cheio de histórias, que eram marcas da mordida de um vampiro e que logo mais, seus devaneios criativos ganhariam vida.

Semanas seguidas dividindo a mesma sala levaram a sonhos fantasiosos, a mocinha que nunca havia pensado em namoro ou garotos, passara a vivenciar em sua cabeça, cada um dos contos de fadas que sabia não serem possíveis de acontecer na vida real. Todas as tardes a ansiedade era como uma bola de ferro acorrentada a sua perna, um ritual de beleza se apresentava a frente do espelho, lábios que nunca tocaram maquiagem, agora carregavam sempre um tom corado de vermelho. Cabelos selvagens, presos em cetim e atenção plena a cada detalhe de sua sútil beleza. Apesar dos esforços, por falta de atenção ou por falta de interesse, o jovem rapaz nem chegava a olhar para ela, mas isso se mostrou não ser um problema já que aos dez anos ela já era uma garota ambiciosa e essa falta de atenção dele só fazia com que ela ficasse ainda mais interessada.

Os dias passaram lentamente, o coração que já fora pacífico, transformara-se em um oceano revolto, pelo menos até o rapaz desaparecer completamente de seus dias. Fosse por gozação do destino ou proteção dos deuses invisíveis, o garoto ao qual a doce menina fora apaixonada, já não se fazia presente em seus dias. Por uns dias a garotinha esperou que ele voltasse, mas O Grande Dia dessa volta nunca chegou. Apesar de ter começado a olhar para outros garotos, ela continuava dando o nome do garoto rechonchudo para os príncipes em seus sonhos e histórias mal escritas.

Como nos filmes que retratam o tempo, alguns anos se passaram, três, para ser mais exata. Ela já não brincava mais de faz de conta, já tinha mais de duas bocas na sua conta de beijos e um pouco de volume nos seios. Ele não era mais tão rechonchudo, não carregava mais um exército de espinhas no rosto e não tinha mais o cabelo loiro de porco-espinho. Quando numa noite qualquer a menina decidiu que gostaria de comer pizza, mesmo que não gostasse, agradeceu aos céus por ter encontrado a primeira pizzaria fechada, pois na segunda opção de estabelecimento, bem atrás de sua cadeira, na mesa ao lado, estava o amor de infância com o qual por incrível que pareça, ela ainda sonhava. Parecia que o destino desejava dizer algo, mesmo que não fosse com palavras. Mas essa seria só mais uma das muitas vezes em que os dois se cruzariam.

Um ponto importante nessa história, é que lá na infância quando ambos tinham apenas uma década de vida, a garotinha escrevia a ele, cartas que nunca eram assinadas com seu nome e eram entregues por uma amiga próxima um pouco mais corajosa. Ela tinha esperança de ter seu amor correspondido, mas não tinha coragem para revelar que aquele emaranhado de cabelos escuros e olhos pequenos eram apaixonados pelo cabelo dourado escuro e olhos castanhos brilhantes dele. Então, ele nunca soube que ela era sua admiradora secreta, mas por outro lado ela sempre achou que ele soubesse, que já havia ficado óbvio, e no dia em que ele nem a olhou na pizzaria, três anos depois das cartas, ela teve a certeza de que não era recíproco.

A vida seguiu o curso e sempre fazia questão de esfregar o rapaz na cara da pobre garota apaixonada. Eles nunca trocaram uma palavra, mas durante os anos ela o via pelo bairro, em mercados, ruas movimentadas e lanchonetes, ele permanecia sem notar a presença dela mas o coração da garota permaneceu frenético em cada uma das esbarradas que o destino os fazia dar.

Com a chegada da adolescência, ele iniciava o processo de se tornar o garoto mais cobiçado dos lugares que frequentava, sempre sendo referência do que as garotas desejavam em um rapaz, e sempre que podia fazia questão de somar beijos para a sua longa lista de quase amores. Enquanto ele se tornava um conquistador, a mocinha só desejava um amor que a fizesse sentir completa, que acalmasse suas guerras internas e afagasse seu coração. Durante um tempo considerável, ela conseguiu seu amor manso. Foram tempos de bom grado até se tornarem épocas abrindo mão de sua autenticidade de menina. Ela sempre gostou de romances, de gestos afetuosos, de filmes das décadas passadas e de ser ela mesma, e por um tempo foi tudo isso que ela perdeu, em troca de seu amor distendido. Os dias de calma se tornaram meses de tortura psicológica, até que o inesperado voltou a acontecer. A constância chamada destino estava agindo novamente e nenhum dos dois protagonistas dessa trama imaginava.

Anos não são dias, e por isso foi tão surpreendente quando num intervalo da escola, a menina que agora já não tinha mais uma franja na testa avistou o seu primeiro amor na janela de uma das salas de aula. A lembrança das cartas de amor infantis a acertaram como uma pancada na cabeça. Isso não podia estar acontecendo, eles não podiam estar na fase dourada dos dezesseis anos e ele lembrar que ela era a boba do fundamental que o enchia de elogios e poemas bregas em papéis velhos de atividades já corrigidas. Seria vergonhoso demais. Em detrimento desta complicada questão, ela passou a evitá-lo, escondendo-se sempre que ele estava por perto. Em uma das fugas repentinas o garoto de olhos de amêndoa descia a escada do corredor de salas e a mocinha estava subindo a mesma escada, o choque foi tão repentino quando ela levantou a cabeça e o avistou ali que seu quadril automaticamente girou no sentido oposto fazendo com que ele não a visse e que a mão dela batesse com força no corrimão de ferro. A dor foi lancinante, mas ela só se permitiu urrar em agonia depois que ele já se fora de sua vista. Poucos foram os meses que eles brincaram de pique-esconde. Por culpa de um amigo em comum o jogo durou pouco. As cartas eram um segredo só dela, mas um dia ela se viu contando ao melhor amigo sobre a coincidência de ter sido apaixonada por um garoto que continuava a cruzar seu caminho através do tempo. A história foi recebida pelo amigo como a fábula mais insana da literatura, mas não louca o suficiente para que esse amigo pensasse ser uma má ideia contar a outros.

A garota costumava ler nos cantos da escola, poucos eram os amigos que fizera desde que chegara, foi surpreendente ver o rapaz bem apessoado com olhos bonitos se aproximar como um velho amigo. As mãos dela tremiam, o coração se agitava no peito, as pernas balançavam em ansiedade, pois há duas horas atrás, o tal amigo havia dito que não resistira e contara ao rapaz sobre a história que ouvira. Quando os passos em sua direção cessaram, ela só pôde agir como se não sentisse o mundo girando mais rápido. A escolha de palavras do garoto não foi muito pensada, mas chegou aos ouvidos dela como um grito agonizante. Quando a garota soube que ele lembrava dela e que ainda guardava cada uma das cartas bregas escritas em papéis velhos com a caligrafia caprichada. O inesperado foi quando ele mesmo disse que até àquele momento acreditava que aquelas cartas eram escritas pela amiga dela, pois sempre quem entregava os gracejos era a outra. Fora um choque descobrir que todo aquele tempo em que permanecera apaixonada, outra havia levado o crédito e o rapaz nunca soubera de seu amor, pois o amor que ele leu não havia chegado à seu coração como dela.

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