Capítulo Único

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Ramiro estava cansado. Cansado de ser xingado pelo patrão, de só fazer besteira, de decepcionar seu Kevinho, de tentar abafar todo aquele sentimento que emergia pelo "amigo", cansado das vozes em sua cabeça o repreenderem. Estava exausto. Nem entendia como ainda tinha forças pra acordar cedo e trabalhar na lida todos os dias.

A cada dia parecia que estava mais perto do seu limite. Limite de que? Não conseguia elaborar, tudo era muito confuso e desorganizado em sua mente. Mas que estava a ponto de explodir, estava. E não sabia como seria essa explosão, e nem quem seria afetado, e isso lhe causava um certo medo.

Mais uma vez, estava em seu carro seguindo para o Naitendei, caminho que já seguia no automático, não precisava nem pensar em qual rua entrar, em qual velocidade seguir ou quando mudar a marcha. Era o lugar mais frequente do seu caminho, e o mais confortável e acolhedor. Ou era, pelo menos.

Muita coisa havia mudado nas interações que aconteciam no Naitendei. As meninas já não davam mais em cima de Ramiro, o que ele agradecia, e seus momentos com Kelvin estavam cada vez melhores, com mais toque, mais olhares, mais amor. Se é que era possível.

Mas ao mesmo tempo, havia mais conversas sérias em que Ramiro sentia-se contra a parede, sem saber o que fazer, o que lhe causava muita angústia. Afinal, não queria que Kelvin chorasse ou ficasse bravo por causa das besteiras que falava, mas não conseguia fazer diferente. Era assim que tinha aprendido, e as palavras saíam sempre de sua boca sem pensar de fato sobre elas. E aí que estava o problema. Não pensar sobre o que dizia. Não pensar sobre o que sentia. Não pensar, evitar ao máximo ficar de frente com aqueles pensamentos e emoções que fariam sua vida virar de cabeça pra baixo se de fato as encara-se.

Ao mesmo tempo que não pensava, pensava demais. A cabeça parecia girar com todos aqueles estímulos. Novamente, a sensação de estar à beira de um colapso voltava a apertar forte seu coração.

As divagações foram interrompidas ao avistar o Naitendei e uma certa confusão na frente do bar. A caminhonete do Grupo La Selva estava muito mal estacionada, junto de outro carro que parecia familiar à Ramiro. Enquanto se aproximava, começou a reconhecer as meninas do bar apavoradas observando uma cena que apertou ainda mais seu coração.

Antônio La Selva estava segurando de maneira brusca o braço de Kelvin, enquanto tinha o rosto vermelho de tanto gritar. Kelvin o fitava com um olhar impositivo, sem medo, enquanto tentava soltar-se do poderoso senhor La Selva.

一 Garoto alegrinho insolente! Vou te fazer entender a quem você deve respeitar nessa cidade! 一 As palavras atingiram Ramiro assim que saiu de seu carro, batendo a porta. 一 Ah! olha aí o jumento do seu namoradinho! Outro que vou ter que dar uma lição pra aprender a me respeitar! Tá muito mudado esse imbecil, cheio de gracinha pra cima de mim.

一 Larga. o. Kevinho. 一 Foram as únicas palavras que se materializaram na boca de Ramiro, que saíram entredentes, quase em um rosnado. Seu coração estava acelerado, sendo bombeado pela raiva que surgia em seu peito e começava a tomar conta do corpo todo.

一 Ramiro! Não encha a porra da minha paciência! Seu namoradinho tá precisando aprender com quem ele tá falando. E você, suma daq-

Suas palavras foram interrompidas bruscamente pelo disparo da arma de Ramiro. O peão atirou na direção de António, mas mirou em alguma árvore atrás dele, fazendo a bala passar a uma distância segura da cabeça do patrão.

Todos os presentes ficaram chocados, segurando a respiração. Era praticamente possível sentir com as mãos a tensão que se instalou rapidamente no ambiente.

一 Ramiro, calma... me escuta... 一 a voz de Caio surgiu de algum lugar, Ramiro não havia percebido sua presença. Aliás, mal via qualquer pessoa que estava ali, a não ser o Patrão e seu Kevinho, que o encarava com um olhar que Ramiro não conseguia decifrar. Estava com medo dele? Com orgulho de sua atitude? Não conseguia entender, mas não interessava, Ramiro só queria vê-lo longe daquele homem ao qual precisava se submeter todos os dias.

一 Larga. O. Kevinho. 一 Ramiro apenas repetiu, na mesma entonação de antes.

一 Pai, acho melhor você...

一 Tá ficando louco, rapaz!? 一 o patrão berrou em fúria. 一 Eu sou seu patrão e você me deve respeito! Não me faç-

Mais um disparo. Dessa vez, o tiro acertou o chão, perto dos pés de Antônio. Os espectadores da cena prenderam a respiração mais uma vez.

A cada minuto que aquela cena durava, a raiva de Ramiro aumentava. A raiva se tornando um profundo ódio.

一 Pai, solta o Kelvin antes que aconteça algum tragédia. 一 Caio tentava apaziguar a situação enquanto sentia, pela primeira vez, medo de Ramiro. Nunca o tinha visto daquela maneira. Nunca presenciou tamanha raiva no olhar de alguém.

Aquele homem mataria uma pessoa.

Esse olhar era recíproco, pois Antônio encarava Ramiro da mesma maneira. Torceu um pouco o nariz em desaprovação, e empurrou Kelvin pelo braço, o soltando. O garçom correu até Ramiro, que o olhou com intensidade. "Vai ficar tudo bem" era a mensagem que o peão queria passar com o olhar. "Eu nunca vô deixá ninguém fazê mau a ocê. Eu já disse", foi o que pensou enquanto encarava aqueles lindos olhos que poderia passar horas observando, e que agora estavam marejados pelas lágrimas, e num brilho de pavor. Ramiro voltou seu olhar ao patrão e prontificou-se a colocar Kelvin atrás de si. A mão esquerda virada para trás, levemente encostada na cintura do garçom, de um modo protetivo, e a mão direita ainda com o revólver voltado para Antônio La Selva, que deu uma leve risada num tom de deboche.

一 É Ramiro, minhas suspeitas estavam certas, você realmente desmunhecou pelo rapazinho alegrinho. Deixou de ser macho.

Mais um disparo destinado ao nada.

一 Ramiro! Por favor! 一 A voz de Caio soou em algum lugar, mas Ramiro mal ouvia.

一 Rams... eu to bem... não faz o que eu to pensando que você pode fazer... isso vai só te prejudicar ainda mais. 一 dessa vez foi Kelvin que pediu, e só então Ramiro parou de encarar o patrão, olhando para aquele homem baixinho de olhar radiante.

一 Kévinho... eu acho que vô exprodi de raiva... to perdido...

Kelvin pôs a mão em seu ombro num gesto de solidariedade e acolhimento.

一 Não se preocupa, eu to aqui. Eu vou te ajudar a se encontrar, tá? Abaixa essa arma primeiro. Esse velho não merece a morte 一 sua expressão mudou para uma breve raiva 一 ele tem é que viver muito e pagar por tudo que ele fez. Mas agora, abaixa essa arma, tá?

A voz de Kelvin era um verdadeiro calmante para Ramiro, sempre o tranquilizou, mas naquele momento, sua voz não teve o efeito de sempre. O corpo inteiro de Ramiro parecia estar afetado pelo ódio que sentia.

一 Ah pronto! o frozô tentando segurar esse jumento! 一 Antônio falou com desdém.

Um dia, Kelvin disse a Ramiro que seus sentimentos estavam presos em uma represa. E naquele momento, a represa havia acabado de se romper. Todos os sentimentos inundaram os olhos de Ramiro em forma de lágrimas, deixando sua visão embaçada. Todos os sentimentos inundaram sua mente, trazendo junto memórias. As lembranças surgiam como uma enxurrada, ao mesmo tempo, desorganizadas. Tudo vinha a sua mente, as palavras ofensivas que o patrão já disse, os empurrões, os tapas, os "serviços especiais" que fazia em troca de manter seu emprego e o sustento de sua mãe.

Não dava mais.

A mão esquerda apertou levemente a cintura de Kelvin, em busca de um conforto. A mão direita puxou o gatilho.

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