foi numa quarta feira. recebi a notificação no meu celular de algo que eu acreditava ser rotineiro, quem sabe uma distração qualquer para o dia entediante que eu estava tendo. o choque, entretanto, veio como uma corrente, deturpado, inebriante e pela primeira vez em algum tempo eu tive medo de ficar sozinha.
pensamentos desgovernados pela neblina familiar. tentei te dar meus olhos, para que tivesse outra perspectiva além da violência diária que tinha de conviver. tentei te dar minha pele, tão rasgada quanto a sua, mas cicatrizada ao ponto de não precisar arder, tentei te emprestar minha mente, turbulenta, criativa, para que parasse de encarar o vazio angustiante de todas as manhãs. te ofereci minha voz para que gritasse, tão, mas tão alto, que eles não teriam coragem de se aproximar um passo sequer em sua direção. e eu ainda tento, mesmo que você já não esteja mais aqui.
tento ver que não havia muito que eu pudesse fazer, que não há dor física que transpasse, que não há barulho que ronde e que todo esse nada que eu sinto agora é só uma fração do que você teve de conviver por toda sua vida. eu nunca seria você, nunca aguentaria o tanto que você aguentou e seria um egoísmo disfarçado de otimismo tão nojento meu em oferecer sem pestanejar qualquer uma de minhas características quando nunca lhe faltou nada; você sempre teve tudo, sempre sentiu demais, sempre transbordou por poros, buracos e rasgos, sempre tentou ser vista e... meus orbes nunca enxergaram você pelo que realmente é, ocupados demais em visualizar o passado em risadas tímidas vespertinas.
e isso continuou rondando pela minha cabeça, um pacote de salgadinhos pela metade, duas bocas secas, uma vida inteira pela frente. introspecção definitiva, novidade salteada aos arredores, paredes brancas manchadas. você seria minha amiga para todo o sempre? cartinhas de amor declaradas, elogios sinceros, mãos dadas e promessas de dias melhores. eu lutaria contra um tubarão para arrancar um sorriso seu.
mas as coisas não são tão fáceis. não é porque amo que consigo manter e você andava como se quisesse fugir, agia como se tivesse o mundo entre suas mãos só para poder esmagá-lo e deixá-lo igual ao suco de uva que tomávamos na hora do lanche. eu não conseguia entender suas palavras, seus gestos e suas ideias desafiadoras, lhe oferendo um sorriso ridiculamente ingênuo que contrapunha sua risada sapeca. eu te via como uma criança, mas quando você se entregou as malditas linhas brancas eu soube que o passado não poderia trazer você de volta.
um ano atrás, quando eu muito não ouvia de você, vi no noticiário sua tentativa. o gosto amargo explodiu pela minha boca e a sensação de ter algo tão conhecido escapando pelas minhas palmas foi desesperador; sequer era uma surpresa, num riso desesperado me culpei e questionei-me se ainda havia algo que eu pudesse ter feito para lhe fazer acreditar que o mundo vai além do seu maldito lar. mesmo que você não quisesse me ver, mesmo que me desprezasse, mesmo que nada mudasse, eu ainda sentia esse ímpeto de te proteger de todo o mal provocado contra uma criança. você nunca cresceu e lhe ver chorar é algo que desperta em mim uma agonia rastejante e órgãos efervescentes. pensar que eu nunca mais irei ouvir qualquer resmungo seu me faz acreditar que certas coisas nunca poderão ser esquecidas, mas também nunca revividas.
eu não quero abrir o jornal, não quero ver o seu rosto estampado em funeral, muito menos acreditar que você se foi, o que é estranho de se pensar porque, por mais que já não fizesse parte da minha vida, os seus rastros queimam em luz por cada pedaço meu. as pessoas ao meu redor jamais compreenderiam, te conheceram quando você já era pura fama circulando pelos corredores do nosso antigo colégio, elas não viram o que eu vi, nem sentiram seu cheiro doce de pertinho, podendo te abraçar e te ouvir confessar que todos os rumores não passavam de uma invenção para um personagem que achava não ter nada a perder. bom, você me tinha, me guardou bem escondido na prateleira mais alta e eu fiquei. fiquei até o caos que adornava tua existência me fizesse quebrar e os cacos perfurassem sua derme. nunca foi culpa sua, nunca foi culpa minha, teria sido diferente?
bella, em algum lugar desse universo eu sei que está me ouvindo. queria lhe dizer nos minutos que me restam antes de te deixar ir em eterno que nunca, nunquinha te esquecerei. que adoro teus desenhos ousados, que o som da sua voz doce me faz companhia em alguns sonhos — já faz algum tempo, talvez você apareça essa noite — e, principalmente, que sua alma não é o que eles dizem e sua aparência vai além do que você vê; em algum lugar, alguém com toda certeza, reconhece você como você realmente merece, assim como eu fiz pela primeira vez naquele verão em dois mil e quinze.
adoço meu chá de camomila. te chamo baixinho como se me fizesse acreditar, te respondo aquela cartinha de dois mil e dezessete um pouquinho atrasada, você me perdoa? o gosto amargo continua pela minha boca, imagino o que eu nunca te disse, o que sempre quis te dizer, o que eu queria ter ouvido de você, tudo se torna um borrão igual as memórias que tenho e os traços de rosto seu.
🫧
fiz isso aqui sem pretensão alguma sem revisar muito no máximo que minha confusão e e enjôo permitiu. bella nunca soube de meus textos, porque ironicamente enquanto ela me dava tudo eu recebia de bom grado e não podia retribuir na mesma medida. hoje eu vejo que poderia mostrar a ela, até consigo imaginar seus comentários ácidos com um tom sublime nas entrelinhas, antes de hoje eu não tinha admitido, mas eu meio que sinto saudades daquele tempo, nós duas contra o mundo.
eu vou sentir sua falta bella, mas ainda vou me lembrar e guardar cada risada sua, assim como a vez que te guardei no meu colo pela primeira vez, espero que possa encontrar a paz que tanto precisava 🖤
VOCÊ ESTÁ LENDO
bella.
Non-Fictionbella, em algum lugar desse universo eu sei que está me ouvindo. queria lhe dizer nos minutos que me restam antes de te deixar ir em eterno que nunca, nunquinha te esquecerei. que adoro teus desenhos ousados, que o som da sua voz doce me faz companh...