Capítulo 10

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"ADOLESCENTE DA REGIÃO ENFRENTA TRAGÉDIA E DÁ A VOLTA POR CIMA", dizia a manchete. Logo abaixo, uma foto de David Ibarra na cadeira de rodas. Sorrindo.

De repente, tudo fez sentido. Era por isso que, quando desci até a cozinha, encontrei meu pai de pé, olhando o jornal aberto sobre a mesa. Ele estava de costas pra mim, mas dava pra ver que havia levado a mão à boca.Seus ombros tremiam.

- Pai?

Ele pôs a mão na mesa e respirou fundo antes de se virar.

- Oi - ele disse. - Pronta para o café da manhã?

Fiz que sim com a cabeça. Ele fechou o jornal e foi para o fogão pegar uma frigideira com ovos mexidos na manteiga. Meu pai era daqueles que não dispensavam uma boa refeição de manhã: começava cada dia com uma quantidade mínima de ovos, bacon ou linguiça, e torradas. Ele acordava supercedo e quase sempre já estava na rua quando eu descia para ir à escola, deixando para trás apenas as sobras e o cheiro de carne de porco.

Encontrá-lo ainda na cozinha às sete era uma raridade. Vê-lo chorar beirava o assustador.

Dei uma olhada no jornal enquanto ele preparava um prato enorme pra mim. Queria saber o que estava lendo. Só quando o telefone tocou tive chance de descobrir.

David Ibarra está num dia bom. Não sente dor, acabou de conseguir uma boa pontuação no seu jogo de videogame favorito, e está prestes a se deliciar com uma pizza especial. Para alguns,coisas assim talvez não representem muito. Mas para David, atropelado por um motorista embriagado sete meses atrás e paraplégico, cada dia é uma vitória.

Senti meu estômago revirar. Meu pai ainda falava ao telefone no corredor. Depressa, continuei a ler.

Dia 15 de fevereiro. David mais uma vez jogava Warworld. A palavra "competitividade" não é suficiente para definir a relação que ele e seu primo Ricardo mantinham quando se tratava desse jogo tão popular. Sempre que possível, os dois passavam horas jogando, muitas vezes até altas horas. Aquela noite, David conta, "foi especialmente incrível, mesmo para os nossos padrões.Jogamos por tanto tempo que eu mal conseguia manter os olhos abertos. No final, acabei dormindo, e acordei com o controle em cima do peito."

Ele sabia que estava encrencado, mas imaginou que acordar na própria cama poderia aliviar a bronca. Afinal, a casa dele ficava a apenas duas quadras dali. Por volta das duas da manhã, ele subiu na bicicleta e seguiu seu caminho pelas ruas escuras. Estava quase em casa quando viu os faróis.

"Foi uma loucura", ele recorda. "Não tinha nenhum carro na rua, nada. De repente, surgiu um bem na minha frente. E não parecia que ia parar."

Ele não lembra do acidente em si, o que sua mãe considera uma bênção. Sua primeira lembrança é de acordar na calçada e ver as pernas retorcidas. Então veio a dor.

Ouvi passos no corredor: meu pai estava voltando. Fechei logo o jornal e o afastei de mim bem na hora que ele apareceu na porta.

- Como estão os ovos? - perguntou.

- Bons. Obrigada. Cadê a mamãe?

- Não está se sentindo bem - ele disse ao encher sua caneca novamente na cafeteira. - Voltou para a cama.

Minha mãe costumava acordar ainda mais cedo que meu pai; sempre buscava o jornal e lia do começo ao fim. Até conseguia imaginá-la: debruçada sobre a mesa, com a caneca de café perto do cotovelo como sempre, virando a página e dando de cara com a manchete e a foto. Por toda a cidade, outras pessoas faziam o mesmo.

De repente, no caminho para a escola, passei a notar mais os jornais na porta das casas e à venda nos postos de gasolina e lojas de conveniência. Ao entrar na escola, tive a sensação de que todos me encaravam, embora não fizesse ideia se eles sabiam que Jay era meu irmão. Na sala, antes da primeira aula, enquanto todos conversavam e riam ao meu redor sem prestar atenção nos avisos, abri o artigo no celular.

Os Bons Segredos (JenKook )Onde histórias criam vida. Descubra agora