Cap único

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Às vezes, quando pego carona, passo na frente de onde costumava ser a lanchonete. Você se lembra dela? Algum parente seu era dono, ou algo do tipo. Você começou a trabalhar ali logo que saiu da escola, esperando a chance de começar a cursar uma faculdade.

Não sei se percebeu todo o esforço que fiz para manter-te em minha vida. Quantas vezes tentei me aproximar cada vez mais. Seria egoísta da minha parte culpar seu péssimo estado mental? Ou seria egoísmo seu se apoiar nisso como desculpa para me tratar mal?

Teve uma vez que levei uma amiga nossa lá, você se lembra? Eu saí do colégio com ela e corri para lá. Ou da vez que levei a maioria dos seus amigos, porque achei que seria legal um encontro. Agradeço por ter bancado a conta, mas...

Já te contei da vez que combinei de te encontrar lá, e você disse "Apareça tal horas", e eu o fiz. Você não tinha chego ainda. Já te contei de quantas vezes fiquei sentada no chão, nos degraus da escada do metrô, de pé atrás de postes porque você nunca chegava no horário certo? Já reparou quantas vezes eu começava conversas só para não perder o contato com você?

Acho que nunca soube disso.

Seguindo meu caminho, chego na escola de dança. A mesma que você dançou por tanto tempo. Você sabia? Que agora sigo os mesmos passos que você? É claro que não. Nossa amizade era um fio e você o cortou.

Quando nos conhecemos foi uma amizade simples, era só conversas e trabalhos. Mas com o tempo, nossas paredes foram ruindo.

Você se lembra do último ano, quando todos estavam em choque por uma fatalidade que aconteceu em nossa escola? Você se lembra do susto que me deu, desaparecendo e agindo exatamente daquele jeito suspeito? Você sabe quanto chorei achando que iria te perder da maneira mais dolorosa possível?

Porque eu chorei. E muito. Conte minhas ligações, todas aquelas que você rejeitou. A cada uma, acrescente uma rachadura no meu coração. Acho que meu problema é se importar mais com os outros do que eles se importam comigo. Acho que meu problema é cuidar mais dos demais do que de mim.

Mas você não sabe disso.

Me encaro no espelho agora. Como pude me deixar chegar nesse ponto? Será que minha amizade comigo mesma é tão tóxica quanto a nossa? Eu me abandonei, me sacrifiquei, me deixei de lado por gente que não daria dois passos por mim. Ao menos eu sei disso.

Estamos aqui, agora. Você num buraco, e eu aqui fora, jogando cordas que você corta, esticando escadas que você empurra, estendendo meus braços, os quais você não aceita.

Você alguma vez já parou para pensar em suas próprias atitudes? Alguma vez você realmente levou em conta tudo o que eu te disse? Suas decisões não são as melhores, é claro, mas eu tentei. Eu fiz meu máximo.

Sabe, eu também não estou num momento legal. Tudo parece errado, meu corpo, minha mente, meu curso, minha profissão. E mesmo assim eu fiquei, eu tentei.

Só que agora eu cansei. Quero ir embora. Quero sair da borda desse buraco. Pare de gritar, pare de me chamar se não vai aceitar a corda que novamente jogo para você. Por que tudo tem que ser tão difícil?

Eu tento. Eu estou aqui, coberta de terra, fibras de corda, pedaços de madeira as escadas que quebrou. Meus braços já doem, minhas mãos estão dormentes, minha cabeça lateja. Eu não posso contar o que sinto, não quando me parece que seus problemas são maiores do que os meus. Aliás, será que é isso mesmo? Você está no buraco e eu aqui fora? Ou estou no fundo também, tentando puxar você por um buraco nas paredes para outro buraco?

Paro, levanto a cabeça, olho em volta. Não sei onde estou. Faz muito tempo que não sei onde estou. Estou lutando contra teias de aranha, terra, sangue e chumbo.

Porque assim como todos, assim como os outros, nossa amizade é tóxica. Mas você não sabe disso.

Nossa amizade é TÓXICA...Onde histórias criam vida. Descubra agora