Capítulo Único

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Kelvin estava nervoso. Depois de anos sem se falar, sua mãe tinha conseguido seu número de telefone com Odilon e ligado pra ele, querendo vê-lo. Ela disse que estava muito doente, entristecida por ter ficado tantos anos longe do filho, e queria reencontrá-lo.

Em nenhum momento no entanto ela havia mencionado o porquê desse afastamento. Kelvin também não, tinha ficado muito emocionado com a ligação da mãe e com a possibilidade de revê-la. Eles tinham chorado ao telefone, e marcado de se encontrar pra almoçar naquele fim de semana.

Kelvin tinha saído de casa aos 17 anos incompletos. O pai tinha visto ele com seu primeiro namoradinho e surtado. Tinha gritado com o filho, dizendo que aquilo era errado, que não aceitava um filho assim. A mãe tinha escutado tudo calada, e quando Kelvin arrumou uma trouxa de roupas e disse que ia embora, ela não fez nada para impedi-lo.

Foi assim que Kelvin foi parar em Nova Primavera. Inicialmente ele tinha pedido abrigo para o  primo Odilon - durou uma semana, pois seu pai ligou pro sobrinho e assim um Odilon sem graça disse que não poderia mais acolher o primo.

Pelo menos ele não fez o resto que o pai de Kelvin tinha pedido: o próprio tinha ouvido o pai aos berros com o sobrinho no telefone pedindo pra ele consertar Kelvin e torná-lo "macho".

Sem ter pra onde ir, pois não tinha dinheiro, ele
bateu perna a cidade inteira procurando emprego e abrigo, e acabou no bar de Cândida.

Ela não queria aceitá-lo - era muito jovem - mas ele acabou conseguindo o cargo de garçom. E quando completou 18 anos, Cândida permitiu que ele oficialmente recebesse os seus próprios clientes no quarto, assim como as meninas - antes disso ele já fazia um programa aqui ou ali escondido da dona do bar, que o tratava como filho - embora sua preferida fosse sem dúvida Luana.

Mas sua vida tinha mudado muito nos últimos anos. Quando conheceu Ramiro, parou de fazer programas. E um belo dia depois de uma armação inusitada recebeu um convite para ser cantor no estrangeiro.

O sonho tinha durado pouco - apenas alguns meses - mas o suficiente pra Kelvin juntar uma boa grana e pra perceber que apenas dinheiro não trazia felicidade: todo o tempo que passou no estrangeiro cantando ele passou melancólico, deprimido até.

Depois que voltou, entre trancos e barrancos, entre sequestros, trambiques, brigas, dramas, carinho, amor e muita paciência (e uma boa dose de sessões com a psicóloga) ele e Ramiro tinham se acertado. Ainda havia um longo caminho a ser percorrido - e tirando o povo do bar, ninguém mais na cidade sabia a verdade sobre Ramiro e Kelvin - mas eles estavam juntos. E assim como Kelvin era o porto seguro de Ramiro, ele também o era para Kelvin.

E por isso quando ele marcou um almoço de sábado com a mãe, Kelvin também convidou Ramiro.

Kelvin combinara com Zezinho um almoço bem saboroso no dia da visita de sua mãe. O bar, durante o dia, costumava ficar vazio, e Kelvin e as meninas ajeitaram o salão de forma a não ficar óbvio o outro ramo de trabalho no bar. Assim foi que Kelvin recebeu sua mãe no Naitandei para um almoço de sábado preparado por Zezinho e servido por Graciara.

O primeiro momento de encontro dos dois tinha sido preenchido por um abraço apertado e por muitas lágrimas. A mãe contou que o pai de Kelvin falecera já há alguns anos, e como ela tinha sobrevivido esse tempo todo após vender a pequena porção de terra deles e passar a trabalhar exclusivamente como costureira.

Kelvin contou quase tudo o que fizera desde que chegou a Nova Primavera, deixando a parte dos programas de lado, e contou também sobre sua breve carreira no estrangeiro.

Nesse momento, Ramiro chegou ao bar. Ele havia avisado a Kelvin que se atrasaria pro almoço por conta do trabalho, mas o mais novo não havia se importado porque isso daria um tempo para ele conversar sozinho com a mãe.

"Mãe, esse é o Ramiro."

Ramiro estendeu a mão para a senhora baixinha e enrugada a sua frente. "Eu... eu sou um amigo do seu filho," completou, a coragem para falar a verdade morrendo em sua garganta.

A senhora pareceu encantada em conhecê-lo, e logo estavam conversando animadamente durante o almoço. Ramiro estava contando sobre o desafio de um pequeno produtor focado em plantar e colher soja em meio a tantos grandes produtores. Kelvin mal podia acreditar em como sua mãe parecia tão feliz e receptiva a Ramiro. Será que todos esses anos haviam mudado sua cabeça?

Até que chegou a hora da despedida. E ao abraçar Ramiro, a mãe de Kelvin falou: "Ramiro, você é um bom rapaz. Um dia sem dúvida encontrará uma bela e amorosa companheira e terão muitos filhos. Será que você não consegue ensinar ao meu filho o que é certo, o que Deus nos ensinou mas escrituras, e o convence a procurar uma esposa?"

Kelvin ficou paralisado, e sentiu o corpo todo formigando, como se tivesse levado um choque.

Ramiro se afastou da mãe de Kelvin e colocou as mãos na cintura, puxando a calça pra cima.

Mas o que saiu da boca dele não foi o velho jargão de sempre.

"Dona. Eu demorei muito tempo pra entender que isso que a senhora tá falando é uma grande bobagem. Amor é amor. Deus é amor. E ele quer que a gente se ame. Eu não preciso encontrar mulher nenhuma, esposa nenhuma. Eu amo seu filho, eu amo o Kevin, e é com ele que vou construir uma família. Ele me faz feliz. E eu tento fazer ele feliz. Se a senhora não enxerga o filho maravilhoso que a senhora tem, do jeitinho que ele é, a senhora não merece chamar ele de filho, nem que ele chame a senhora de mãe."

Kelvin sentiu os olhos marejarem, e duas lágrimas descendo pelo seu rosto. Ramiro não só dizendo que o amava e falando que quer construir uma família com ele, mas rebatendo a fala homofóbica de sua mãe.

"Eu... eu achei que você fosse macho." A senhora retrucou algo ofendida e na defensiva.

"E eu sou. Quem eu amo não determina se sou macho ou não. Se sou um homem de bem ou não. E eu já fiz muita besteira, muita coisa errada nessa vida, e passei um tempo na cadeia pra pagar meus pecados. Mas amar o Kevin não é pecado. Ele é o maior presente que Deus me deu." Ramiro esticou o braço direito até os ombros de Kelvin e o aninhou em seu peito, levando a mão esquerda até seu rosto para limpar-lhe as lágrimas. "Se a senhora não enxerga e não aceita o seu erro, acho melhor ir embora."

Kelvin, que até então fitava os olhos de Ramiro durante seu discurso apaixonado, olha pra mãe. Ele reconhece a pessoa atrasada com pensamentos tacanhos e que deixou o pai expulsá-lo de casa quando ele confirmou de forma desafiante que gostava de meninos e não meninas. "Acho melhor a senhora ir embora," ele fala num fio de voz, com o coração partido mais uma vez pela mãe.

A mulher levanta os ombros, se empertigando toda, e replica: "Achei que você tinha aprendido depois de todos esses anos longe. Vejo agora que eu estava errada." Em seguida ela dá as costas ao filho, mais uma vez, mas dessa vez quem vai embora é ela.

"Ramiro..."

"Shhh. Ela já foi embora. Eu nunca vou deixar ninguém - NINGUÉM - machucar ocê." Ramiro segura o rosto de Kelvin com as mãos, acariciando as bochechas dele com os polegares enquanto seca as lágrimas que insistem em cair.

"Você...você me ama?" ele pergunta algo incrédulo. "E você quer construir uma família comigo?"

Ramiro deposita um suave selinho em Kelvin. "Eu sei que não costumo falar do que sinto. Que por muito tempo chamei ocê de amigo, dizia que gostava muito de ocê e que não conseguia viver sem ocê mas amor... sempre tive dificuldade em falar. Mas é verdade. Eu te amo, Kevin. E quero que sejamos oficialmente namorados e um dia casados. E um dia iremos adotar e criar nosso - ou nossos - bacuris."

Kelvin se estica na ponta dos pés para dar um longo beijo em Ramiro, apoiando as mãos em seu peito. Quando ele se afasta, ele foca nos olhos do peão e diz, com um sorriso e olhos ainda marejados de lágrimas, denotando toda sua emoção: "Eu te amo, Ramiro."

Ramiro abre um sorrisão iluminado, todo feliz, agarra o menor pela cintura, dando um apertão nele, e retruca: "E eu te amo, Kevin."

"Amigo" MachoOnde histórias criam vida. Descubra agora