Capítulo único

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Já perdi as contas de quantas vezes nesse ano eu morri. A cada dia que se passa eu lentamente me sinto apodrecer, a carne se torna escura e o coração desfalece a cada batida. Os dias, tão cinzas quanto os meus pulmões sem ar, vão perdendo o sentido. Já não me lembro de viver bem, de realmente me sentir viva e da sensação de aproveitar a vida. Tudo é monótono; tudo recomeça no outro dia.
Quem derá eu fosse uma personagem de uma história de fantasia; com superpoderes que ultrapassassem as barreiras do mundo. Ou que eu vivesse em um conto, onde no final teria uma moral de história que me ajudaria a enxergar o mundo melhor. Mas não. Cá estou eu, divagando sobre como tudo se parece o mesmo de sempre. Será tudo isso minha culpa? Mas, por quê? Nem ao menos pedi para nascer. Por que o mundo é assim? Por que a sociedade é assim? Porque eu sou assim? Bem, essas respostas eu não sei. Talvez nunca descubra ou talvez tenha uma iluminação tal qual os monges que um dia alcançaram o nirvana em seu leito de morte.
Morte. Essa palavra me dá medo. Não consigo pensar o que se pode ter após a morte. Será o sofrimento eterno? Ou talvez uma reencarnação? Talvez seja só o mais puro nada. O que é o nada? Por que meu coração se inquieta tanto ao pensar nisso? Será uma vontade de viver escondida nos meus pensamentos obscuros? Vale a pena viver? Vale a pena estar morta? Nunca saberei. Sou covarde demais para tentar buscar respostas pra essas questões.

Amanhã já é um novo dia, e por mais que eu tente não consigo dormir. Essa ansiedade me mata, leva um pouco da minha sanidade a cada segundo e me faz prever vários futuros catastróficos. Talvez eu possa repensar sobre os superpoderes. Eu não saberia lidar com tal responsabilidade, ainda mais se eu pudesse ler mentes a torto e a direito. É torturante não saber o que os outros pensam sobre você, mas mais ainda é descobrir a verdade.
Bebo um gole do copo meio cheio - ou meio vazio - e dou mais um trago no cigarro. Eu sou um lixo. Te prometi que pararia de fumar, mas estou aqui traindo sua confiança de novo. Suspiro profundamente. Essa vai ser a última vez. Será que vai? Quantas últimas vezes existiram?
É triste ver a sua expressão cansada sempre que chego em casa. Você fica assim por minha causa? Deve ser difícil de lidar comigo, não sei demonstrar o que realmente sinto por medo. Queria poder me abrir totalmente com você, mas tenho medo de te perder se o fizer. Na verdade, acho que já te perdi. E me perdi. Me perdi a tanto tempo que nem mesmo sei se posso me achar. Jogo o cigarro dentro do copo de café e bebo líquido, sentindo a mistura estranha do tabaco com o café amargo. É hora de ir embora. Pego a carteira do fumo no bolso traseiro da calça e o jogo no lixeiro ao meu lado. Dessa vez eu irei conseguir. Pensamentos intrusivos me invadem. Dou as costas a lixeira e me coloco em meu caminho, tenho que fazer isso por nós. Por mais que me sinta morto por dentro, não quero te desapontar e nem te ver me olhando de forma triste. Sei o quanto é cansativo de lidar comigo e admito que já desisti de mim a tempos… Por isso, vou me esforçar pra voltar a acreditar em mim de novo, pois você acredita.

quantas últimas vezes existiram?Onde histórias criam vida. Descubra agora