Turbulência

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Quando meu pai chegou naquela noite, eu não esperei para jogar a bomba. Disse-lhes

- sentem. Nós precisamos conversar - me senti meio estranha, como se os papéis estivessem trocados, mas me ignorei.

Meu pai estava com um sorriso cínico no rosto, achando graça daquela minha súbita vontade de conversar.

- Seguinte, me desculpem por não ter avisado antes, mas eu me inscrevi para uma seleção de intercâmbios. Os 22 selecionados poderiam escolher entre 4 países e viajar por três meses, com absolutamente tudo pago. - eu parei, recuperando o fôlego.

-Como assim Emily, o que você... - minha mãe começou, e eu a interrompi.

-Eu não terminei mãe. - ergui uma das mãos e ela se calou - eu fui selecionada. Não sei como, mas fui. E a reunião de selecionados é dia 4, próxima sexta.

Eu me sentei. E suspirei. Pronto, a bomba havia sido lançada e atingido o alvo com sucesso.
Nossa, isso vai dar uma treta.

Meu pai se levantou, e andou de um lado para o outro, depois voltou a se sentar. Eu me preparei para uma grande lição de moral mas ele apenas disse
- você disse tudo pago?

Oi?

Minha mãe o olhou indignada e o repreendeu.
- Luiz! Isso não vem ao caso! - ela deu-lhe um tapa no braço e virou para mim - o que você espera como resposta Emily? Você deveria ter contado logo no inicio. Não sei o que dizer.

-hmmm, que tal um "sim, querida emily, nós deixamos." - eu fiz o meu melhor sorriso angelical, o que era muito difícil pra mim - qual é mãe! Dia 19 eu faço 18 anos. Vocês bem que poderiam me dar esse sim de presente né.

Ela fechou os olhos e encostou na cadeira. Depois tornou a olhar pra mim. Meu pai só assistia. Ele sabia que a palavra final vinha dela.

-ok. - ela disse por fim. Eu abri um sorriso sincero e queria dançar no momento, mas me segurei. Era a mesma alegria de ouvir "o almoço está na mesa". Totalmente inexplicável. - seu irmão vai enlouquecer.

-ah, lidem com o drama adolescente sozinhos.

Eu os abracei, e subi correndo as escadas. Um dos meus cachorros, o Johnny, me acompanhou. Ele deitou na minha cama, enquanto eu mandava uma mensagem para Luísa, contando o que estava quase me matando de felicidade.

O fim de semana passou e com isso, mais uma dolorosa semana começou.
Eu já havia comunicado minhas amigas da viagem e estava muito animada, pedindo para o tempo passar mais rápido.
Sexta chegou. Eu passei o dia me perguntando o que aconteceria naquela reunião, mas por volta das 4 horas, eu me arrumei e pedi pra minha mãe me levar até o prédio. Não era tão longe, mas o trânsito de São Paulo estava quase impossível como sempre. Ela estacionou, eu a beijei no rosto e entrei. Caminhei até a portaria e perguntei onde seria o encontro, e a mulher de óculos atrás do balcão me indicou. Quando entrei na sala, havia várias cadeiras formando um círculo.

Nossa, isso aqui é uma reunião para selecionados do intercâmbio ou uma sessão dos alcoolotras anônimos?

Várias pessoas estavam sentadas e algumas em pé, conversando algo ou rindo de piadas que eu não ouvia. Uma mulher caminhou até mim, e percebi que era a mesma que havia feito minha ficha. Que mão abençoada.

-Emília não? - ela sorriu.
- hã, não. Emily. É um prazer. - eu sorri de volta.
- meus parabéns. Fico feliz que tenha aparecido. Essa é uma reunião importante, onde vocês, selecionados, vão se conhecer e também escolher os países. Fique a vontade.

Eu abri mais um sorriso amigável e tentei digerir as informações. Me sentei em uma das cadeiras e esperei que começassem a falar. Uma garota se aproximou e se sentou ao meu lado, eu a encarei e tentei Sorrir mais uma vez, e por sorte, ela sorriu de volta.

- Oi! Tudo bem? Meu nome é Anne, qual o seu? Você está ansiosa? Eu estou muito ansiosa. Pera, quantos anos você tem? Eu tenho 18. Você parece ter a minha idade. - ela continuou a falar.

Meu Deus, será que vai me deixar responder alguma das perguntas?

Ela ficou quieta, como se tivesse ouvido esse meu pensamento. Aproveitei o momento.

- Oi. Meu nome é Emily. Sim estou ansiosa e vou fazer 18 anos, agora... Dia 19 de setembro. É um prazer Anne. - estendi a mão e ela me puxou pra um super abraço.

Qual é o problema dessa garota. Eu ein.

Eu a encarei, e percebi que ela parecia uma boneca humana. Os cabelos castanhos ondulados, como os meus costumavam ser, caiam sobre suas costas. Ela tinha olhos redondos verdes e cílios de dar inveja. E nossa, que pele invejável. Usava um vestido florido e sapatilha rosa. Não podia ser mais diferente de mim numa escala de 0 a 10. Eu estava quase sempre de preto, ou usava minhas camisetas de banda. Meus sapatos se resumiam basicamente em all stars e eu basicamente, não saia de casa sem meu Delineador e algum batom marcante. Digamos que eu não seja muito "menininha", mas quem liga?

Anne continuou a tagarelar sobre o que ela esperava dessa viagem e sobre a lista de coisas que ela gostaria de comprar e conhecer. De repente, ela ficou em silêncio e eu assustei.

-ual. - ela exclamou. Eu me virei para onde ela olhava.

Um cara, que provavelmente devia ter a nossa idade, se sentando em uma das cadeiras. Absolutamente lindo. É sério. O cabelo preto caído sobre a testa contrastava demais com a pele branca e os olhos azuis. Abaixei mais o olhar e notei a camiseta do Aerosmith.

Roqueiro. Per-fei-to.

Mas sério, o que era aquela pessoa? Acho que pessoas bonitas deveriam ser proibidas de sair de casa, para não atrapalhar a concentração das outras. Ele deve ser irritante. Não dá pra ser bonito e legal. Vai contra as regras do universo.

Anne voltou a me encarar
- Mas gente, o que é esse garoto? Esse tipo de pessoa deveria ser proibida de sair de casa pra não atrapalhar a concentração das outras. - ela terminou dando uma risadinha e eu a olhei surpresa.

Acabei de concluir que seremos amigas minha querida Anne.

Eu olhei novamente em direção ao Deus grego que estava a poucas cadeiras de nós. Fiquei pensando que até os caminhoneiros deveriam canta-lo. Se eu fosse um caminhoneiro, eu cantaria. Ele olhou pra mim e me pegou analisando-o. Eu corei, tipo, muito. Me senti uma criança, sendo pega pintando as paredes com os dedos. E pra minha surpresa, ele sorriu.

Meu Deus do céu, eu achei que não dava pra melhorar, mas olha, dá. Que covinhas são essas? Quero morrer e me enterrar nelas. Os olhos dele me lembram águas turbulentas. Emily, para. Quando foi que eu virei um Caio f. De Abreu? "águas turbulentas". Nossa, estou parecendo uma psicopata, jamais deveria ter saído da psicóloga.

Eu sorri de volta, um pouco mais retraída e nessa hora, um homem começou a falar. Fixei meu olhar no palestrante e me esqueci completamente da beldade à minha frente.

Mas obviamente, ele não ficaria muito tempo no esquecimento.

Amanhã Não Se SabeOnde histórias criam vida. Descubra agora