ONTEM
Quando eu tinha oito anos, eu senti pela primeira vez o peso da perda do amor. Estávamos, eu e meus pais, silenciosamente voltando do casamento do tio Phill e da tia Lucy, quando mamãe falou:
- Será que você não poderia ser um pouco mais simpático, Anthony? Você ignorou quase todo mundo.
- Ignorar é a melhor maneira de não ouvir ou falar bobagens. Você deveria tentar, Marie.
- Isso não foi nem um pouco amável. Você não era assim. Se não estava confortável, não poderia pelo menos fingir que estava feliz?
- Eu não preciso fingir mais nada, Marie. Não somos mais um casal. O divórcio sai daqui a duas semanas.
- Anthony, na frente do Ian não!
- Ele irá saber de qualquer maneira. Não adianta forçar nada. Escute aqui filho, eu e sua mãe não nos amamos mais. Um dia o amor acaba. Sempre, sempre foi e sempre será assim. - Meu pai se virou apontando o dedo e dizendo pausadamente.
- Por céus! Ele só tem oito anos.
E depois de meia hora de discussão, eu choraminguei. Estava totalmente exausto física e emocionalmente. Meu pai se virou mais uma vez para mim por poucos segundos, míseros segundos de desatenção à pista úmida, ele acabou perdendo o controle e por fim se chocou ao grande carvalho da casa dos Hansons. Tudo o que eu vi foi um clarão, barulho de freios e gritos. Depois senti sangue escorrendo pela minha testa e ouvi alguém dizer "ai meu deus".
Acordei pela manhã com tio Phill e tia Lucy ao meu lado. Tia Lucy em uma das mãos tinha um colar que parecia com o que a minha mãe tinha usado na noite anterior. E na outra um lencinho de seda azul que parecia antigo demais com as iniciais LF. bordadas de dourado.
Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, tio Phill se inclinou para mim e disse passando as mãos entre meus cabelos:
- Ian, você precisa ser forte, garotão...- apesar dos meus oito anos eu sabia muito bem o que aquilo significava. - A sua mãe, bem, ela não resistiu e se foi. Mas ela está em um ugar melhor agora. Marie está segura.
- E papai?- perguntei olhando em volta.
- Ele está descansando no quarto ao lado. - disse tio Phill com a voz ainda embargada.
Olhei pela janela e por ela vi um lindo céu azul, era um dia quente de verão. Tudo parecia bem lá fora, onde não tinham garotinhos sufocados sem mãe e perfurados por agulhas.
E o terror me atingiu, nunca mais vê-la e abraça-la, nunca mais ser pego no colo e ser coberto de amor maternal. Então chorei, e a partir daquele dia odiei a mim e ao mundo. Meu pai pelo seu coração inconstante. Eu por ser tão choroso. O dia por estar tão sarcasticamente bonito e a vida por ser tão injusta. Depois fechei os olhos e adormeci, esperando que aquilo fosse só mais um pesadelo horrendo. Mas não era, era só a vida mostrando os dentes.
HOJE
Levantei às sete da manhã como de costume e me arrumei para a escola. Era o meu último ano no purgatório. Eu não falava com ninguém, porque todos me odiavam, ou vice-versa não lembro bem como esse ciclo vicioso começou. Eu não os culpava, longe disso. Eu sabia o quanto eu era estranho e o quanto o meu mal humo e a minha falta de interesse em socialização só pioravam as coisas. Mas tudo bem, eu já estava familiarizado com a solidão e o barulho monumental dos meus pensamentos.
Sou Ian Curtis, sou jovem, simples assim. Tenho uma mente e um coração totalmente desconfigurados. Tenho inúmeros defeitos de fábrica e outros que vim adquirindo ao longo dos anos. Moro com o meu pai e professor de Física, Anthony Curtis. Ele é velho e tem o coração amargurado, apesar dele não dizer nada.

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Transcendental
Teen FictionQuão malogrado alguém consegue ser? O quão difícil é crescer? Essa é só mais uma história cheia de erros e acertos insignificantes.