Hillary vivia a definição de sonho americano: uma jovem loira de olhos claros e pele pálida, que tinha acabado de se formar no colégio e estava pronta para viver sua própria vida. Filha de um pai bem sucedido, que apesar de imigrar do Brasil para recomeçar a vida, conseguiu sucesso na carreira. Tinha a vida que qualquer um poderia pedir, marcada por momentos felizes e por uma boa condição de vida, mesmo sem ter sua mãe presente. Seu pai sempre foi sua muralha, mesmo que em momentos ele fosse distante.
Por conta disso, havia algo que não saía da mente de Hillary há anos: as raízes de seu pai. Velmiro, chamado por ela de Vevê, sempre foi um homem calado e nunca chegou a compartilhar com a família fatos sobre sua antiga vida no nordeste brasileiro. Tudo o que Hillary sabia era que seu pai ganhou um sorteio aos dezessete anos que o tornou capaz de viajar até os Estados Unidos, mas essa história nunca foi convincente para ela. Então, procurando no armário de Velmiro, acabou achando um álbum de fotos de couro marrom, desgastado com o tempo. Ao abri-lo, além do cheiro de poeira envelhecida, foi contemplada com registros e memórias da infância do pai em uma cidade chamada Mangueverde, como dizia no canto de algumas das folhas.
Enquanto passava pelas páginas, um misto de emoções tomou conta de Hillary. Sorriu ao ver o pai comendo pão na calçada de casa, emocionou-se nas celebrações repletas de doces de seu aniversário e sentiu a união familiar nas fotos de festas juninas. Cada foto contava uma história, não apenas sobre Velmiro, mas sobre toda a vida que ele levou em seu passado.
Pela primeira vez tomou conhecimento de que seu pai não era filho único; possuía três irmãos e uma irmã, todos mais velhos. O cabelo cheio e cacheado do pai agora era apenas uma memória nas fotos. Hillary analisava e absorvia cada um dos registros, imaginando como seria crescer em meio a tantas pessoas queridas, festividades e tradições nordestinas, totalmente diferente do que já teve em toda a sua vida.
No entanto, uma pergunta surgiu: por que Velmiro havia deixado toda aquela vida para viver sozinho do outro lado do continente? As fotos, cheias de amor e alegria, não revelavam o real motivo dessa partida. Determinada, decidiu que descobriria mais sobre o passado de Vevê e sobre suas origens agora ou nunca.
Mais tarde naquele dia, Hillary se juntou à sua família à mesa para comer. Ciente de que não poderia falar sobre Mangueverde com o pai, devido a presença da madrasta Cass e seu filho, Ezequiel, ela aguardou até que Vevê se levantasse da mesa para ir atrás dele. Quando finalmente Velmiro se retirou da sala de jantar, Hillary seguiu-o até o jardim tranquilo nos fundos da casa — o único lugar da residência com cores em meio ao preto-branco-bege que Cass estabeleceu em todos os cômodos. O sol se punha, tingindo o céu com tons de laranja e rosa, enquanto a brisa suave balançava as folhas da pequena horta de seu pai.
— Vevê, posso conversar um pouco contigo? — ela se aproximou e perguntou suavemente, enquanto ele observava de pé as últimas luzes do dia.
Velmiro assentiu, e os dois caminharam juntos até um dos bancos de ferro do jardim. Ficaram alguns momentos em silêncio e Hillary não conseguia esconder seu nervosismo. Sabia que as palavras que diria a seguir eram importantes demais e tinha medo de não serem ouvidas, pois Vevê nunca falou muito sobre o passado. Respirou fundo antes de falar.
— Encontrei um álbum de fotos antigo no armário hoje. Fotos suas de Mangueverde. Fiquei maravilhada em ver a vida que você tinha lá, sua família, as festas... Por que deixou tudo isso para trás? Tudo bem se o senhor não quiser falar sobre isso.
Velmiro continuou em silêncio enquanto encarava o horizonte, parecendo perder-se em memórias que preferiu esquecer e que agora voltaram como uma tsunami em sua mente. Com um suspiro suave, começou a falar com sua voz grave e seu sotaque que, mesmo após anos, continuava nordestino.
— Sabe, Hillary, Mangueverde é um pedaço do meu coração que ficou para trás. As fotos que encontrou, elas representam um tempo cheio de vida, tradições e pessoas que amo. Eu cresci em meio àquelas ruas de barro, ao som do forró, risadas e a alegria das festas. Mas a vida nos reserva caminhos inesperados, e às vezes, precisamos tomar decisões difíceis. Entende?
Os olhos dos dois se encontraram e Hillary pode sentir a nostalgia e ternura que seu pai estava transmitindo. Ainda assim, percebeu Vevê hesitate, como se estivesse buscando cuidadosamente as palavras certas para continuar sua fala.
— Se eu pudesse, não sairia de Mangueverde. A vida aqui é melhor, claro, e me proporcionou essa família linda que tenho hoje. — Estendeu a mão direita até as de Hillary e as apertou — Mas seu velho aqui não teve escolha se não atravessar o continente e arquivar a antiga vida naquela cidade. Se eu quisesse viver mais do que meus dezessete anos, eu teria que abandonar isso. — Velmiro encarou o chão com uma expressão enigmática. — Sinto falta de tudo.
— Como assim "viver mais do que meus dezessete anos"? O que aconteceu, Vevê?
— Houveram conflitos na época que não posso te revelar agora. Foi mais seguro pra mim e pros meus irmãos se eu fosse embora.
O peso das palavras de Velmiro pairava no ar, criando uma conexão entre os dois, que era nova para Hillary. Seu pai nunca se fez muito presente por conta do trabalho, e ninguém nunca soube nada sobre ele, então aquilo já era especial por si só. Hillary sentia o impacto das escolhas difíceis que ele teve que fazer para proteger a família que Velmiro tanto amava. Um sentimento de determinação estranho surgiu em seu inteiror.
— Eu queria saber mais sobre as suas origens, Vevê. As nossas origens. Ver aquelas fotos foi incrível, mas não suficiente. Sinto que preciso ir para Mangueverde.
A expressão de Velmiro se tornou espanto por alguns segundos, suavizando-se em seguida. A ideia de sua filha querer conhecer mais sobre suas origens o tocava profundamente, apesar de assustadora. Passou a mão pela barba devagar enquanto respondia.
— É maravilhoso saber que você quer tanto descobrir sobre Mangueverde, um lugar tão especial pra mim.— Ele segurou as mãos dela com ternura. — Mas eu preciso ser honesto contigo. Ainda existem sombras do passado em Mangueverde, e algumas cicatrizes podem ser reabertas. Não quero que coisas e pessoas do meu passado te afetem.
Hillary notou a hesitação na voz de Velmiro e o olhar preocupado em seus olhos.
— Se escolher ir, eu entendo completamente. Não somos americanos, nunca seremos, e não quero que você se conforme com a vida americana e abandone o sangue brasileiro que corre em você. Se eu quisesse, nunca teria pagado tão caro em uma professora de português pra você. — Velmiro riu, olhando para o horizonte.
— É mesmo... — Hillary sorriu também. Lembrou de como odiava aprender português, mas hoje agradece ao pai por isso.
— Mangueverde é parte da nossa história, é parte de quem nós somos. — Velmiro suspirou, revelando um peso que carregava consigo há anos.— Só quero que você fique bem, Hillary. Você é o que me sobrou de Mangueverde.
— Eu entendo sua preocupação, Vevê. Vou pensar mais sobre isso e, se eu for pra Mangueverde, prometo ser cuidadosa. Sei que sou muito boca grande, mas vou me segurar. — Os dois gargalharam.
De repente, as luzes do jardim foram acesas. Era Cass, que encarou os dois e franziu o cenho. Hillary revirou os olhos ao ouvir a madrasta falar em inglês com seu sotaque texano marcante e chato. Extremamente chato.
— O que estão fazendo aí? Está escuro.
— Estamos conversando. Já vamos. — respondeu Velmiro. Diferente da sua voz em português, a em inglês era bem mais fina.
— Ótimo. Hillary tem louça para lavar.Assim que Cass entrou na casa novamente, Hillary debochou de suas palavras imitando um fantoche com a mão. Velmiro riu e se levantou.
— Não faz assim. — Sorriu, estendendo a mão para a filha. — Vamos.
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Love em Mangueverde
AléatoireHillary, uma jovem americana em busca de suas raízes, embarca em uma jornada até o interior do Nordeste, terra natal de seu pai. Na vibrante cidade de Mangueverde, ela se vê envolvida pelos acordes do forró, descobrindo não apenas os encantos da cul...