BELENO
O plano dela deveria ter alguma falha.
Eu sentia esse pensamento corroendo os cantos da minha mente, aqueles que eu recusava a reconhecer os pensamentos. Eu não deveria pensar que o plano de uma companheira teria falhas. A desconfiança costumava ser o pedaço de podridão que permeava o grupo, que o traía.
Quando aceitamos o destino que nos impuseram e fizemos o laço profano, este virou uma coisa viva que caminhava da tatuagem para o resto de nossos órgãos, bombeando sangue e exigindo total confiança de todas as partes para todas as partes, não aceitando erros. Sequer sabíamos como funcionava até um fatídico dia em que brigamos e acabamos desmaiados no que poderia ter sido a morte de todos se não tivéssemos encontrado a saída por contra própria.
Havia muitos segredos por trás das habilidades, da ancestralidade, que fluía no sangue dos deonences, coisas que a ciência não podia provar nem entender e aquilo, a perpetuidade do comprometimento de um voto de confiança que não deveria ser quebrado, era o pior deles. Foi a armadilha em que caímos primeiro, achando que nossas liberdades de pensamento e arbitragem poderiam se manter intactas mesmo conectados.
Éramos reféns do coletivo.
Mas ali estava eu prevendo que o pior aconteceria com o plano de Olinda e acabaríamos todos no Tribunal de Inquisição. E com esse mero pensamento, minha tatuagem apertava tanto o meu dedo que era quase como senti-lo ser decepado fora.
Porra!
Maldita hora!
Meu tormento foi adiado por um momento quando vi a coral Pegasus rastejar para fora da janela aos fundos da Administração, discreto e altamente treinado para a precisão invisível que um espião deveria ter. Era como chamávamos aquela cobra de toda forma. A Cobra-Espiã que observava e ingeria informação, mandando diretamente para Galileu através do vínculo de putrefação que eles dividiam enquanto esta estava acordada.
O que a Malasartes não daria para saber sobre as habilidades especiais de Gali. Será que eles notavam que existia uma anomalia em epikos como ele? Não muito perceptível mas o suficiente para gerar dúvidas. Talvez eles não se dessem conta porquê não tinham a vantagem do conhecimento oculto escondido à vista de todos. E ainda bem que não sabiam. Se qualquer um no alto-escalão descobrisse sobre o que éramos, o que podíamos fazer... Não seriamos apenas julgados e condenados, seriamos usados por todos eles.
E eu colocaria muitas pessoas em risco pelo meu envolvimento com o oculto do mundo deonence.
Sem dizer nada, Galileu e eu aguardamos a saída de Andino do Castelo — tão despreocupado e relaxado em seu terno que nem sequer parecia que estávamos fazendo a pior merda de nossas vidas. Um sorriso pequeno despontou do rosto do epiko de terra elegante, quando nos viu carrancudos. Bom... Pelo menos eu estava carrancuda, Galileu estava perdido em pensamentos enquanto retirava os documentos do estômago de Pegasus como se não fosse nada de mais enfiar a mão na boca putrefata de um animal.
Andino olhou ao redor, como se refletindo a arrogância de ele tirar aqueles papéis da boca de uma cobra morta sob o sol da tarde, à vista de todos na varanda de mármore aberta daquele lado do Castelo, um andar abaixo das janelas da Administração. Não podiam nos ver de toda forma, não enquanto eu segurasse no lugar o campo refletor de luz que disfarçava nossas presenças a certa distância.
— Ela pegou tudo, Gali? — Andino questionou, uma careta de desgosto substituindo o sorriso quando notou o que o outro epiko de terra fazia.
Galileu acenou, segurando a pilha de pastas na mão.
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Aóratos - A Última Mesa
Fantasy"Aóratos vem do grego para Invisíveis. Invisíveis éramos nós, os cinco percursores do caos auto-imposto do imediatismo primitivo." Em um futuro distante e destorcido de nossa realidade, a morte de um ser imortal jogou uma praga na terra escurecida o...