Primeira Carta

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           Antes de suplicar a vossa senhoria que atenda ao meu humilde pedido que, por tantas vezes negado, sinto-me ousado ao persistir, necessito tomar as linhas desta carta para explicar-lhe com detalhes tudo o que se passou e que assim, compreenda o motivo a que leva meu pedido.

          Espero não lhe roubar muito tempo, pois sei que os vossos santos afazeres não podem ser adiados, menos ainda negligenciados. Respeito-os muito para desperdiçar vosso tempo com frivolidades. Portanto, o que lhe relato nesta carta é de suma urgência de vossa ciência e, se for da vossa vontade, a vossa devida aprovação.

          No dia em que lhe fiz a primeira proposta, as palavras me fugiam, a emoção do meu desespero não me permitia clareza no pensamento. Tu desacreditastes de mim devido à minha incompetência em explicar-lhe os acontecimentos, o que certamente lhe soaram como "anedotas inventadas pela mente criativa de um adolescente que deseja livrar-se de seus pais." Contudo, juro-lhe por minha alma virgem, juro-lhe pelo corpo de Cristo que morrera por nós, juro-lhe por todo o amor que Deus tem pela suas criaturas. Juro-lhe que o que relato aqui não são, de forma alguma, histórias mentirosas. Dito isto, suplico-lhe que leia o que tenho a escrever com a mente aberta, ciente de que arrisco todas as minhas fichas nesta última tentativa de convencê-lo e convencer a Igreja a compadecerem-se de minha situação e a de meus honrados pais, principalmente a de meu pobre pai.

          Apresento-me a ti de pronto, Padre Josias, já que tal oportunidade não me fora concedida outrora. Meu nome é Afonso Alcântara, filho de Bartolomeu Alcântara e da falecida Maria Aparecida Alcântara.

          Minha pobre mãe falecera aos meus precoces 10 anos de idade, vítima de tuberculose. Anos depois, meu pai conheceu uma mulher chamada Martina Fiore. Esta mulher era sim, ligeiramente mais nova em idade por conta disso, mas resumem-se a 7 anos de diferença.

          Meu pai conheceu Martina durante suas viagens como comerciante de couro. Ela era a filha única de uma família de imigrantes italianos, os quais eram um dos clientes mais fiéis de meu pai e fora oferecida a ele como pretendente para casar-se. Meu pai, ainda com o pesar do luto sob as costas mesmo 5 anos após a morte de minha mãe, hesitou aceitar a oferta, pois acreditava estar traindo o coração de sua falecida amada. Contudo, após idas e vindas à casa desse cliente para entregar-lhe as encomendas, após muitos "entre e tome um café conosco" e muitos outros "pois deixarei você e Martina conversando enquanto preparamos o café" que meu pai finalmente cedeu aos encantos daquela mulher.

          Ambas as famílias possuíam condições financeiras razoáveis. Não eram miseráveis camponeses, mas também não podiam cobrir-se de ouro e prata. Contudo, a família de Martina detinha certa fartura a mais na vida que a de meu pai. Inclusive, sua renda dependia da nossa, já que pertenciam ao ramo dos calçados e acessórios em couro, o couro que compravam de meu pai. Mas isso não impediu que os pais da mulher oferecessem-na de pronto para meu pai, uma vez que ela já estava próximo aos seus trinta anos de idade e sua família tinha pressa para que se casasse o mais depressa possível e que assim, não houvesse uma mulher solteira na família envergonhando-os.

          Pouco tempo depois casaram-se e, devo confessar-te, padre Josias, que Martina me era muito agradável. Cuidava bem de nossa casa, fazia uma ótima comida e sempre buscava agradar-me para ter de mim a aprovação como madrasta.

          Entretanto, nem eu, muito menos meu pobre pai, poderíamos prever o que viria daquela mulher posteriormente. O que relato nesta carta é tudo o que presenciei com meus próprios olhos, esses mesmos olhos que a terra há de comer!

          Até o momento do casamento, Martina nunca deu qualquer indício de quem realmente era. Ou do que estava nela. Digo isso, pois tenho fé na pessoa que ela realmente é, e que Martina não é apenas Martina, é Martina e mais alguém.

Cartas ao Padre Josias [MPREG]Onde histórias criam vida. Descubra agora