Astarco estava em Alexandria, assim como o velho que não se ligava à terra. Ele andava e por onde passava levava consigo a experiência e a sabedoria. Quando estava em Alexandria, ele foi recebido na casa de Nereu, um nobre grego-romano.
Ali, ele presenciou um grupo de músicos que tocavam harpa, lira e flauta. O som era ritmado e o cantor, então, cantou uma música que desagradou o velho Astarco. A música falava da devassidão dos gregos e, na visão do velho filósofo, não tinha nada de valor. Então, ele disse:
- Nereu, eu te pergunto: você, que me recebeu em sua casa e me deu alimento, por que ofende o silêncio com tal letra de música?
Nereu não compreendeu, mas eu sabia que nosso convidado era sensível a pensamentos. Eu o vi uma vez falando sobre a arte, e ele disse que esta deveria ser útil e agregadora. Astarco se levantou e disse:
- Não quero ofender. Sei que fez tudo que pode para me entreter, mas a música que ouço é uma afronta. Assim disse um homem: "Você conhece um povo pela música que seu governante oferece". Se você me oferece isso, eu pergunto: está em guerra com os gregos ou comigo?
Nereu então respondeu:
- Mestre, eu não sabia. Sinto muito por isso. Eu imaginei que cantaria o que está na moda em Roma e que faria bem aos seus ouvidos. Posso pedir para cantar outro hino que te agrade?
Astarco comeu uvas e depois se levantou e disse:
- Meu amado amigo, a quem tenho predileção como filho, tenho que dizer que nem tudo o que falam ou fazem no mercado deve ser tomado como exemplo. O que te obrigam a pensar ou fazer deve ser passado pelo filtro da razão. A arte também deve passar pelo exercício da racionalidade. Afinal, como podemos praticar as virtudes e os pensamentos mais sublimes se ouvimos e aceitamos vibrações densas e pesadas? Tal arte não agrega nada, não soma nada.
Nereu então questionou:
- Mas são os gregos, eles são os promíscuos!
Astarco então foi até Nereu, calmo e sereno, e retrucou:
- Como você tem ferramentas para dizer com convicção que todos os gregos são devassos?
Nereu então disse confuso:
- É o que a música fala. Todos os patrícios falam isso. Aqui no Egito é a mesma coisa!
Astarco sentou, respirou fundo e disse:
- Muito me admira. Vejo que nossa sociedade tende a imaginar que vencemos a vida, tomamos a virtude e o trono da justiça para nós mesmos, apenas pelo fato de sermos romanos. Como se o pré-requisito para ser virtuoso fosse ser um cidadão romano. Eu digo a você, Nereu, que querem plantar uma ideia em sua mente. E se você não abrir os olhos, vai aceitar. Alguns de nossa estirpe são tão baixos quanto tais músicas. Eles usam a cultura, a arte, para promoção de pensamentos depreciativos, idealizando um padrão e rotulando o coração do homem. Isso não o define, nem o eleva, apenas o categoriza. E tudo aquilo que é periférico não é julgado como homem.
Astarco olhou para Nereu, depois olhou para mim e então se virou, ergueu o dedo para o alto e continuou:
- A verdade é que a arte originalmente é uma ponte entre o sagrado e o mundano. Através da arte é possível comunicar-se com os deuses. Nossa mente aceita a arte e segue as ideias que dela provêm. Os homens já notaram isso e querem empobrecer a arte. Querem desesperadamente enfraquecer o pensamento crítico e racional e dar aos homens ideias e sensações prontas. Há muito tempo vejo isso na arte e na política romana. Os imperadores dão ao povo um alimento sem conteúdo, o famoso "pão e circo", para mascarar a verdade. Eu digo a todos que escutam minha voz que este é o prenúncio do crepúsculo. Toda sociedade que usa a arte e a cultura para alienar o povo está sujeita a destruí-lo. Tal manobra é vil e só traz benefícios supérfluos e pouco duradouros. Nereu, não quero te causar mais sofrimento, mas busque pensar e veja os sinais. Eu preciso ir.
Astarco então se levantou. Suas pernas perderam a força e ele estava sofrendo. O império que ele viu crescer, em sua mente, já estava em declínio vertiginoso.
Astarco foi até a praia e o filho de Nereu, Aquino Tibério, estava lá. Ele estava tocando sua lira às margens do mar Alexandrino. Ele via o sol e os raios do sol iluminavam seu corpo, como se ele mesmo fosse hélio que desceu do céu para tocar. Astarco olhou para o jovem e disse:
- Por que tocas em silêncio?
O jovem continuou dedilhando as cordas e disse:
- Porque não toco para os homens. Eles querem falar sobre política, não sobre arte!
Astarco se aproximou e perguntou ao jovem:
- Então me diga o que é política, e eu vou dizer o que é arte.
O jovem então respondeu:
- Política é a relação entre dominador e dominado, e o conjunto de ferramentas ordenadoras que tornam possíveis a manipulação das relações sociais, jurídicas, intelectuais, culturais e econômicas de um grupo étnico. Hoje, a política é o domínio e a manutenção do poder, sendo que os políticos mais fazem é isso, alguns com métodos sórdidos e desumanos.
O jovem parou de tocar, então, e continuou a falar:
- Política surgiu como o poder para gerir uma cidade, um reino, uma vida. Era uma arte, mas hoje é uma profissão lucrativa. Antes, os políticos pensavam no povo e não havia separação. Hoje, estamos condenados, com nobres que roubam os pobres e cortiços gigantes em Roma. A democracia hoje é apenas uma sombra do que um dia foi idealizada.
Astarco então disse:
- Arte é fazer o seu melhor com o que tem à disposição, refinar suas ferramentas e praticar aquilo que mais sabe fazer. Arte é dominar as habilidades, que em alguns casos foram dadas pelo divino. Arte é agir e pensar de acordo com o que foi ordenado pelas esferas superiores, nunca traindo o verdadeiro propósito. Os sábios amam a arte, pois de que adianta dominar toda a inteligência e a sabedoria e permanecer insensível? Um homem sábio e insensível à humanidade é muito nocivo ao mundo. Ele vai, com certeza, tomar de assalto a sociedade. Arte é valorizar o belo em suas formas mais mensuráveis e em suas curvas mais palpáveis. Arte agrada o coração e pode ser tocada por ele. Porém, só é possível tocar o coração aquele que tem mente aberta.
Astarco sentou ao lado de Aquino e olhou para o sol.
- É por isso que as pessoas estão perdidas. Separaram a arte da vida. Elas esqueceram que viver é uma arte, ser justo, correto, ponderado, paciente, político é uma arte, pois une o homem a patamares mais amplos e sublimes.
Ambos ficaram em silêncio, contemplando o pôr do sol nos mares gregos e apreciando a arte da natureza.
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Os discursos de Astarco
Historia Cortauma coletânea de discursos filosóficos em formato de contos, onde o personagem Astarco, vive como um mendigo na era de Roma, questionando o sistema e o pensamento da época, com muitas metáforas, será que seus discursos podem ser usados hoje em dia ?