As Fraquezas de Lorina

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Lorina sofria

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Lorina sofria. Preparar um ensopado no jantar passou de uma tarefa simples para um fardo exaustivo, já que o ato de ficar parada na frente de uma panela fazia com que sua concentração se voltasse a um único objetivo: ocultar sua identidade.

A cozinha também não contribuía para sanar sua dor, pois o espaço para locomoção era minúsculo, sendo ocupado por uma mesa quadrada de madeira rústica, um fogão de ferro preto com uma chaminé que liberava a fumaça para fora do telhado, e um amontoado de sacos no chão, sendo esses os cereais e grãos responsáveis pela alimentação da família.

Ela perseverava no ato de mexer o ensopado com uma colher de pau, e o cheiro dos ingredientes era o único deleite que recebia como recompensa, já que por vezes sentia espasmos e fraqueza para sustentar-se de pé. Um passo ou outro a ajudava nisso, e os filhos até achavam curioso quando a viam andando em círculos pela casa, mas nada de anormal.

Quanto aos meninos, por mais que fossem motivo de alegria em sua vida, também poderiam ser causadores de dor, já que a falação deles a atormentava grandemente.

— Bem aqui — disse Nalan para Liandro na sala, apontando com o dedo para o pescoço dele. — Quando ela estiver distraída, vou chegar perto com a machadinha, quieto como um rato, e vou fincar esse negócio com tanta força que a vila toda vai ouvir os seus gritos. — Usou a vassoura para encenar o ato. Por sorte não havia nenhum utensílio de decoração, caso contrário, teria virado estilhaços.

— Ela é muito mais forte que você, Nalan — Liandro o retrucou.

— Por isso que eu disse que vou chegar quieto como um rato...

— Mas você nunca cortou a cabeça de ninguém, como pode saber que será fácil assim?

— Olha o peso disso aqui, Liandro! Não existe pescoço que resista. — Embora tentasse ser convincente, o fato de estar segurando uma vassoura velha e fina não contribuiu.

— Falem mais baixo, por favor. — O pedido de Lorina na cozinha quase soou como uma ordem, mas ela se atentou em não parecer grosseira. Os filhos podiam não ter percebido, mas sua voz saiu com resquícios de angústia. Ela levou os dedos à testa e fechou os olhos, lutando contra o que quer que houvesse dentro de si.

— Mãe? — um deles chamou, o que a fez voltar à realidade.

— Vamos comer? — propôs, evitando prolongar a situação. — Já está na hora de comermos.

A mulher deixou a colher de pau sobre a mesa e pediu que eles trouxessem suas tigelas. Depois disso, usou uma concha para enchê-las. Mesmo que não houvesse luxo, o cuidado com a higiene era notável, e ela se certificou de fazê-los lavar as mãos na tina, que também era voltada para os banhos mensais.

— Duas tigelas hoje, não mais do que isso, esse ensopado tem que durar por três dias — ela os instruiu, esperando que comessem menos do que o limite.

Tendo os recipientes cheios, foram para a sala, e lá seguiram com o costume de fazer suas refeições. Assim como todas as outras casas, os cômodos não possuíam paredes para dividi-los, sendo a casa um enorme quadrado cercado por blocos de tijolos. E um telhado, claro. No centro e de frente para a porta, o espaço ocupado por uma mesa quadrada com três cadeiras e uma janela, destinava-se a ser a sala. Também havia quatro baús de madeira no canto, usados para guardar roupas e cobertas. Visitantes mais sofisticados de qualquer região decerto considerariam tal moradia como um lar miserável, mas a verdade é que a vida dos aldeões das Terras Portuárias nunca exigiu mais do que isso. Lorina e seu falecido marido nasceram e cresceram nesse ambiente, construíram a casa com o pouco dinheiro que obtiam, e mesmo que possuíssem mais, não arriscariam gastar com algo luxuoso, havia coisas mais essenciais do que isso.

— Nalan acha que pode matar a Alória, mãe — Liandro comentou em deboche, quebrando o breve silêncio que havia se instaurado quando se sentaram na mesa.

— Eu sei que posso — ele afirmou, mastigando a batata cozida. — É só uma questão de esperteza.

— Nunca matou sequer um rato.

— E você acha que é difícil matar um rato? Espere aparecer um aqui então, vou te mostrar como se faz.

Lorina escutou enquanto comia, e não viu nenhuma surpresa nas falas do menino, tendo em vista seu comum comportamento inquieto.

— Tentem não pensar em bobagens, vocês dois.

— Não é bobagem, mãe — ele reafirmou. — Vou me preparar para isso, tenho certeza que algum dia terei a chance, quando ela estiver distraída.

— Matar Alória não vai nos livrar dessa miséria, Nalan — disse calmamente, quase com desinteresse. — Tem dez delas aqui, se uma morrer, as outras nos matam. Ou a todos no vilarejo.

— Duvido que fariam isso a todos, elas precisam de nós — retrucou.

— Como assim? — Liandro mostrou-se deveras curioso.

— Quem você acha que iria construir esse muro se nos matassem, Liandro? Precisam de nós.

— Quer tentar a sorte? — Lorina quase esboçou algum deboche sobre a tola determinação no menino, mas isso não era de seu feitio.

— Algum dia alguém vai tentar. — Nalan não abusou da paciência de ambos ao seu lado, e voltou sua atenção para a comida. — Isso não está certo. Não somos animais de carga. Todos os meses elas matam alguém sem motivos, o que a Ilana pode ter feito para merecer aquilo? Tá certo que ela era meio esquisita, mas isso não é motivo.

Lorina nada disse. Preferiu não concordar para acalorar mais o menino, nem discordar para deixá-lo insatisfeito. Poupou-se em voltar a comer.

— O ensopado está ótimo, mãe — Liandro comentou, o que abriu um pequeno sorriso no rosto da mulher. — Se a senhora quiser, a gente pode trazer mais batatas amanhã, e talvez sardinhas também.

— É melhor esperar até a semana que vem. Vocês já trouxeram há dois dias atrás, o senhor Borges pode não gostar de dá-los mais na mesma semana. Ou pode colocar vocês para trabalharem redobrado.

— Eu aguento mais trabalho — Nalan afirmou prontamente segurando sua colher.

— Não quero que cheguem em casa ainda mais tarde, pode ser perigoso. E as donas lá fora podem desconfiar também, acharem que vocês dois vão aprontar alguma coisa para fugirem daqui.

— Mas a gente devia fugir daqui — o menino sugeriu.

— De novo isso? — Se tivesse contado, Liandro diria que essa era a quarta vez que seu irmão deu a mesma sugestão naquela semana.

— Mas eu falei alguma bobagem? Até hoje não sei como ninguém armou um plano para fugir, uma distração, um pedido de ajuda.

— A quem pediríamos ajuda, Nalan?

— A qualquer um, Liandro. Falei para irmos embora em um dos navios do porto mas vocês não me deram ouvidos.

— Elas iriam ver nossa mãe na carroça, Nalan.

— Que fosse escondida.

— Escutem — Lorina os calou. — Podem pensar no que quiserem, só não armem nada, não planejem nada. Vou repetir o que já lhes disse, se alguém aqui os convidarem para alguma tramóia, me falem, e eu decidirei se daremos ouvidos ou não. Não podem fazer nada sem a minha autorização. Sabem como essas mulheres são, se quisermos ter alguma chance de viver, não podemos arriscar cometer besteiras, muitos aqui já morreram por pouco.

A fala foi capaz de acalmar os anseios de Nalan, que finalmente dedicou mais atenção ao jantar do que nos planos de fuga, tendo em vista que todas as sugestões que deu até então foram levianas ou motivo de repreensões.


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