VIII - Ferro para Homens

5 1 0
                                    

  
 
    — Já tinha visto uma selva de pedra alguma vez na sua vida? —
  
    — É...arrepiante —
 
    — Que falta de decoro com o meu lar... —
 
     Essain era uma cidade como nunca tinha visto antes. Estava acostumado às casas de madeira simples de Cyen ou ao castelo antigo e cinzento no topo de Arthelas, esses dois eram extremamente diferentes da miríade de toscas edificações de pedra cinzenta.
 
      Parte delas era habitada por mais de uma família, mesmo teoricamente mal servindo para abrigar uma só. Eram os chamados cortiços: casas de tamanho maior do que o normal, estabelecimentos comerciais com fundos consideráveis ou palacetes abandonados ou cedidos por seus proprietários. Seus cômodos eram repartidos entre cinco ou mais famílias que pagavam aluguel ao dono daquele lugar abandonado pela civilização.
 
      Dessa forma, Grimm quase se sentia vivendo uma piada de mal gosto quando parava para reparar em onde estavam hospedados. Era uma estalagem pobre caindo aos pedaços, com nada mais do que quartos estreitos para proporcionar aos clientes. Mas pelo menos tinha uma privacidade, quê teriam os homens e mulheres atulhados num cortiço.

    — E os homens vivem nos palacetes? — Grimm perguntou a Florian uma vez em que estavam testando o guisado de coelho de uma pensão da Rua dos Vidraceiros.
 
     — Sim, e a nós, os bichos, eles relegam à sujeira e aos chiqueiros onde conseguirem se atulhar — Ele fez uma careta ao morder um pedaço fibroso e gordurento. Percebeu que era um olho.
 
     — Nós somos os bichos? — Se sentia infantil por fazer essas perguntas. Florian respondia com o desinteresse com o qual as pessoas diziam algo simples e banal.

     — Todos que não possuem um pano púrpura sobre os ombros ou envolvendo o pescoço são bichos — O mercenário fez um gesto displicente. — Nossa distância em relação às famílias do cortiço é uma questão de situação. Os homens de púrpura nunca ficarão pobres, mas nós poderemos ficar mais ainda. Uma multa, um imposto não pago, um aluguel atrasado, um assalto em condições suspeitas, um acidente incapacitante ou até uma dívida com agiotas…tudo isso derruba um homem para a miséria —

      Grimm olhou para as pessoas sujeitas às mendicâncias nas calçadas, pedindo dinheiro. Sentiu um arrepio, nunca antes tinha visto isso em sua vida, nunca tinha experimentado tal estado de vida em seu mundinho fechado entre os Guardiões. Como aquilo podia ser natural se em Arwend isso não existia?

    — Não tenha pena deles. Eles não querem sua piedade — Florian interrompeu seu raciocínio.

    — O que você disse? —
 
    —  Eles não querem sua pena, possuem necessidades mais imediatas e não adianta se martirizar com o porquê das coisas serem assim — Florian olhou para um dos mendigos a se arrastarem e se levantou. Caminhou lentamente até ele. — Querem um lugar para dormir, uma refeição quente e uma dose de suspirante para fazer a dor ser esquecida —

      O mercenário ficou de pé em frente ao mendigo até que ele o olhasse de baixo. Cobria o sol e projetava uma longa sombra sobre o pobre homem assustado e acuado, temendo qualquer violência. Florian sorriu como se apreciasse aquilo, como se fosse um rei diante de um vassalo submetido.

    — Implore e talvez eu te dê o que tiver nos bolsos — Sussurrou com um prazer crescente em cada sílaba.
  
    — Meu senhor...obrigado...eu...—

    — Não pedi para que agradecesse, ordenei que implorasse — Retorquiu com uma rispidez sorridente.
 
      O mendigo se prostrou de joelhos para o horror do garoto que assistia, com joelhos ralados e imundos brilhando em carne viva repousados contra os tijolos empoeirados da calçada. Nenhum transeunte se importava ao passar pela cena.

     — Eu imploro, meu senhor, imploro por comida ou dinheiro... —

     — Excelente — Florian entregou o seu guisado gorduroso e virou as costas. O mendigo teve lágrimas levadas aos olhos.
 
      Ele voltou a se sentar diante de Grimm, como se estivesse provando um ponto ao garoto.

     — Por que fez isso? — O garoto perguntou, exasperado.

As Crônicas de Terror e Encanto - 𝐈Onde histórias criam vida. Descubra agora