Capítulo I

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O odor acre de carne queimada tomava conta do ar. Do topo dos galhos de um antigo carvalho, Thorn via a fumaça negra subir numa espiral em direção ao céu, até que o vento a empurrava para oeste. Se você prestasse atenção e desprezasse os demais ruídos talvez fosse capaz de escutar o crepitar das chamas que assolavam a rústica casa de madeira.

Os gritos de agonia deveriam estar audíveis a léguas dali e produziam um arrepio que descia pela coluna de Thorn e o enregelava. Ele estava acostumado a ouvir aquela voz todos os dias, mas não dessa forma. Isso o destruía por dentro.

Como era possível que o garoto sentisse tanta dor sem sequer ser tocado? É porque a dor não é física, ele concluiu. Sequer sabia defini-la, mas ela estava ali: latejante, muda, destrutiva. Sua mente perturbada não conseguia processar o que os olhos viam, e ele talvez jamais fosse capaz de compreender.

Acima de sua cabeça, sobre a floresta de carvalhos antigos e frondosos, a lua reluzia numa noite sem nuvens.

Logo abaixo, toda a sua família queimava.


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Thorn acordou mais cedo que o normal naquela manhã. Talvez tenha sido a ansiedade por ver uma chance de sair da rotina entediante, talvez tenha sido a gritaria no andar de baixo – algo bastante incomum que seus ouvidos sensíveis facilmente detectaram. Ele empurrou o cobertor para o lado e, tentando fazer o mínimo ruído possível, saiu para o corredor. Deixou a porta apenas encostada, pois toda vez que fechavam-na a ferrugem acumulada produzia um ruído irritante e incômodo que era capaz de despertar os mortos. A última coisa que Thorn queria era que os seus irmãos acordassem e irrompessem na habitual cacofonia.

Assim como a porta do quarto, a escada de madeira também precisava de alguns reparos, pois os sexto e décimo degraus – assim contados para quem estava descendo – soltavam rangidos ao receber a menor pressão. Thorn, acostumado a não ser flagrado em suas escapadelas noturnas, pulou-os quase que inconscientemente e conseguiu alcançar o andar inferior sem ser notado.

A gritaria vinha da direção da cozinha. Thorn não atreveu-se a ir muito além, pois não queria ser visto, e permaneceu ali próximo à escada, de onde conseguia ouvir a discussão com alguma clareza. Não era apenas o tom de voz que denunciava a ira de seu pai, mas também o fato de ele estar gritando a plenos pulmões. Hamon era um homem beirando os cinquenta anos de idade sereno e que raramente levantava a voz, mas agora parecia estar fora de si. Em contraponto a esposa tentava acalmá-lo, sempre suave e um tanto hesitante, pois também lhe era estranho presenciar aquela manifestação de temperamento do marido. Primeiro Thorn pensou que os dois estavam discutindo, mas então ouviu uma terceira voz desconhecida – era grave, comedida e possuía uma dose de insegurança que denunciava que seu dono não tinha certeza do que estava falando.

— Vocês têm de pensar no melhor para a aldeia. É o que todos querem e estão pedindo. Ninguém se sente seguro: primeiro o gado começou a morrer, agora as plantações não estão indo bem... — A voz desconhecida foi interrompida por Hamon, mais furioso do que nunca:

— O que não está indo bem aqui é a cabeça de cada um de vocês! Como conseguem culpar uma criança pelas desgraças que estão acontecendo? Não poderiam ser um castigo de Vellan para um lugar cheio de pessoas desprezíveis como vocês?

Foi o suficiente para Thorn. Ele não queria ouvir mais. Jamais deveria ter saído da cama. Jamais deveria ter descido a escada. Segundo o povo da aldeia onde viviam, jamais deveria sequer ter existido.

Antes de retomar o caminho para o quarto, ainda pôde escutar a acusação que era uma constante em sua vida: ele tinha a marca do demônio.


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⏰ Última atualização: Jul 14, 2015 ⏰

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