Khai e Nico no céu do inverno
Quando você cresce sendo uma pessoa trans no meio de outras pessoas cis, é fácil se sentir isolado. Não era só o fato de eu ter nascido não- binário no meio de uma família conservadora, no interior do Rio de Janeiro, mas eu também precisava ser bisexual e autista. O combo de decepção completo para minha família. Talvez esse tenha sido o motivo pelo qual eu cresci fascinado pelas estrelas, pelo que tinha além de nós, meros humanos. Olhar para o céu, para as estrelas, dimensionar o quanto eu era apenas um pequeno ponto no meio daquela imensidão de caos, me consolava. Eu sempre me senti sozinho, sempre senti que eu era o único que me conhecia - que conhecia o Khai. E era solitário, mas, depois de 15 anos daquilo, eu estava acostumado. Eu tinha eu e as estrelas, e elas tinham a mim, e era o suficiente.
Até que eu conheci o Nico.
Era aula de química, com a exceção de que o professor de química odiava dar aula: ele apenas apontou uma página de dever, sentou e ficou mexendo no celular. Eu já havia completado todas as páginas do livro de química enquanto estava em casa, então peguei o caderno e comecei a desenhar, tentando ignorar o ruído das pessoas conversando ao meu redor. Eu sempre sentava na primeira cadeira, onde ficava mais longe da turminha barulhenta, e a cadeira do lado estava quase sempre vazia, afinal, quase ninguém queria ser visto com o nerd - ou sentado do lado da garota nerd esquisita que vestia "roupas de menino". Foi quando ele sentou do meu lado. Usava uma blusa rosa da hello kitty, que ficava bem larga nele. Tinha olhos azuis e o cabelo loiro, longo, e bem cacheado. Eu me senti desconfortável com uma pessoa desconhecida sentando do meu lado, mas ignorei e continuei desenhando.
— Nebulosa olho de gato — ele falou.
Eu levantei o olhar, surpreso. Depois olhei para meu desenho e concordei:
— Nebulosa olho de gato.
— É bonita. Seu desenho também. É minha nebulosa favorita — o garoto falou, e eu pensei que estivesse ouvindo errado. Eu normalmente não era um fã de interagir com pessoas, mas falar de astronomia (ou de quadrinhos) eram exceções.
— Já viu a nebulosa borboleta? — perguntei, tentando conter a animação. — É muito mais bonita. Eu tenho um desenho dela aqui. Quer ver?
Ele assentiu, sorrindo. Eu passei as páginas do meu caderno até chegar no desenho da nebulosa borboleta, mas outro desenho no canto da página chamou atenção dele.
— Aquela é a bandeira não binária?
Fechei o caderno, com vergonha.
— Não — murmurei.
— Tá bom — ele disse, parecendo sincero. Mas depois olhou para mim de cima a baixo. — Tem certeza? — e então repensou. — Tá, ok. Isso não foi muito educado da minha parte. Mas se você tiver outro nome sem ser o da chamada e quiser que eu use, pode falar.
Eu fiquei em silêncio e voltei a desenhar, pensando sobre. Então foi a primeira vez em que eu disse, em voz alta:
— Khai. Meu nome é Khai.
Ele estendeu a mão, e eu fiquei confuso sobre o que fazer.
— É pra apertar minha mão — explicou. — Um cumprimento. Meu nome é Nico. Tipo, o meu nome de verdade. E eu sou um garoto, sei que não parece. Mas eu sou.
Estendi a mão e apertei a mão de Nico de forma desajeitada.
— Meu nome é Khai — falei, esquecendo que já tinha dito. — Eu não sei o que eu sou. Acho que não um garoto. Nem uma garota.
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Khai e Nico no Céu do Inverno
RomanceComo um garoto trans e autista vivendo numa cidade pequena, Khai sempre se sentiu sozinho, preferindo passar seu tempo observando as estrelas e desenhando constelações. Isso é, até um garoto baixinho com sardas adoráveis apontar a nebulosa olho de g...