Fera enjaulada - Memorando

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De manhã até a noite as coisas são difíceis pra mim.

Quando eu era criança eu costumava dizer "bem as coisas vão melhorar assim que eu crescer". Eu cresci e as coisas só pioraram. Em relação a relação a casa e comida, eu tenho sorte em tê-los. Por mais simples que seja já são suficiente.

Mas eu sou infeliz naturalmente.

Quando completei 17 anos meus pais foram embora e sem motivos aparentes, mas pelo menos me deixaram uma casa, e nesse ritmo terminei o ensino médio me revezando entre clubes de estudo e horários de empregos ruins.

Minha intenção era fazer uma faculdade, ser alguém na vida, ter um futuro planejado, mas apesar de tanto não encontrei nada que me agradasse. Comecei duas ou três faculdades as quais tranquei na metade do primeiro semestre, nada me animava eram situações as quais eu não queria na minha vida. Então eu larguei tudo e virei garçonete em um pequeno café alguns metros da minha casa.

O emprego era bom, perto de casa, a carga horária era organizada e eu nunca fazia turno à noite meu salário era mais que suficiente para mim e meu patrão era gentil e generoso. Poderia ser o emprego dos sonhos para qualquer um que sonhasse viver naquela vida, mas eu não eu queria.

Eu queria ser feliz acima de tudo.

Naquela manhã como as outras, eu levantei, me arrumei e sai para o trabalho. Caminhei por entre as pessoas enquanto ouvia os sons da manhã febril. Todas aquelas pessoas amontoadas me incomodava um pouco, elas eram irracionais e se locomoviam como formigas fugindo de um tamanduá esfomeado.
Cheguei no Café, entrei pelos fundos e encontrei Noel na cozinha, ele cozinhava maravilhosamente bem mas não conseguiram nenhuma vaga em nenhum restaurante. Noel deveria ser dois ou quatro anos mais velho do que eu, apesar das situações, ele nunca desistiu e às vezes eu me inspirava nele, na força que ele exalava, era como se ele transpirasse vitória e esperança, coisas que alimentavam minhas manhãs. Conversei com ele por uns 5 minutos e sai para vestir o uniforme. Eu particularmente gostava dele, era rosa, eu adorava rosa no entanto ele era confuso, eu nunca sabia se ele era rosa com listras brancas ou branco com listras rosas mas era quase uma zebra colorida, por baixo desse vestido curto usávamos um calção apertado que ia até os joelhos e um avental cinza amarrado a cintura, o cabelo sempre preso mas eu e Alice não cumpriamos essa regra e o patrão não ligava. Prendi minha plaquinha com meu nome no peito e sai para a cozinha, Noel finalizava algumas tortas.
O relógio marcava exatas 7:00 da manhã quando eu abri a porta da frente, o ar quente da manhã de verão entrou e com ele, a luz amarela do Sol que pintou as cadeiras acolchoadas. Demorou um pouco para Alice chegar, mas ela veio para o meu alívio. Às oito o Café já estava quase cheio e eu andava de um lado para o outro levando xícaras de chá e fatias de torta, sanduíches naturais e batatas fritas, saladas de frutas e bolo de chocolate com sorvete, Alice servia e pegava pedidos também, Noel se matava na cozinha sozinho. Havia homens escrevendo relatórios e conferindo planilhas, havia crianças e adolescentes tomando milk shake, havia advogadas lendo e assumindo casos e havia pessoas comuns que assim como eu, não tinham tomado rumo na vida. Era muito estranho ficar ali olhando as pessoas, elas eram tão diferentes uma das outras ao mesmo tempo que eram tão parecidas.
Se não fosse por aquela manhã, se não fosse por aquela garota, eu nunca teria passado pelo que eu passei. Quando Bianca Poll entrou pela porta eu soube que a minha vida tinha mudado de novo e dessa vez para pior ainda. Bianca andou por algumas mesas e se sentou na mesa 22, ela estava vazia e era ao lado de uma janela. Alice estava muito ocupada então tomando o bloquinho de notas, eu ajeitei o avental e andei até Bianca. Ela estava sentada com uma revista nas mãos e parecia ler uma das matérias que falava sobre vestidos de seda pura. Respirando fundo eu me aproximei e perguntei se ela precisava de algo. Com olhos grandes e levemente assustados ela me encarou e abriu um sorriso, como alguém que encontra um velho amigo. Ela não era minha amiga, mas ela achava que era.
— Você aqui?! Há muito tempo que eu não te vejo, você tá ótima.  — disse ela.
Meu coração se encolheu dentro de mim e eu respondi.
—Faz muito tempo mesmo.
—  Deve fazer o quê? 10 anos? Sim, são 10 anos exatamente. Domingo completa dez anos. Vamos abrir a cápsula.
— Cápsula? — perguntei, eu sabia da tal cápsula, nunca tinham me chamado para colocar nada dentro da cápsula do tempo, mas eu sabia da existência dela eu fui a excluída da turma. Eu a encarei.
— Sim, cápsula. Nao se lembra?
— Lembro sim, mas bem, vai querer o quê? Se puder escolher rápido eu agradeceria, tenho mais mesas para atender.
Ela olhou para baixo e pareceu pensar por uns instantes, me olhando de volta ela perguntou:
— O que você me oferece?
"Que tal um chute no pescoço?" pensei.
— Bom, temos o lanche do dia do chefe.
— E o que seria?
— Bolinhos fritos com glacê — respondi. Ela continuou a me encarar. 
— Bem, pode ser isso então —respondeu finalmente.
— Tudo bem, eu volto em alguns minutos. Fique à vontade. Ela sorriu mais um sorriso falso e voltou a olhar a revista. Eu saí a passos largos rumo a janelinha da cozinha.  Noel estava parado esperando o bloquinho com o pedido.
— Então, quem era? Você pareceu meio assustada.
— Eu não tava assustada, tava irritada. Não gosto dela.
— Quem é ela?
— Uma colega da escola.
— Entendo. A escola não foi boa para você não é?
— Não.
Depois de algum tempo andando em círculos e pensando no passado, onde uma eu de cabelos curtos e roupas escuras se sentava sozinha ao lado de um chafariz. Meu namoradinho da época, estava comigo, tomávamos sorvete e ela apareceu. Resumindo, ela levou minha dignidade e meu namorado. Noel gritou comigo, balancei a cabeça e peguei o pedido de Bianca e mais uma vez respirando fundo para me concentrar, me dirigi para sua mesa. 
— Aqui está — disse.
— Ah muito obrigada Greta — respondeu ela.
— Meu nome não é Greta — retruquei.
— Ah me desculpe — respondeu cínica — qual é mesmo seu nome? Eu acabei me esquecendo. São tantos colegas. 
— É Magarya.
— Ah sim, era isso mesmo. Escute Magali,  você vai até a escola hoje não vai? Quer dizer, a gente tá juntando a turma toda para fazer algumas atividades durante a semana para no domingo a gente poder abrir a cápsula do tempo.
— Na verdade, eu não fui convidada —  respondi — e para ser sincera, eu não faço muita questão de ir.
— Poxa você continua desanimada. Devia sair um pouco desse emprego, ele parece que está te consumindo. "Ora mas o que você sabe sobre minha vida e meu emprego? "
— Você provavelmente tem uma faculdade muito excelente não é?
— Mas claro que eu tenho, só não encontro vagas — menti descaradamente, eu estava extremamente irritada e se eu pudesse eu teria enfiado o garfo na mão dela e ela ainda tinha aquele sorriso afetado no rosto.
—Bom, eu espero que aproveite os bolinhos. Se precisar de alguma coisa é só chamar.
Eu tentava ser gentil mas conviver de novo com as pessoas da minha sala antiga era a pior coisa que poderia me acontecer. Foram 10 anos tristes, mas pelo menos em paz.
Todos me achavam melancolica, triste e deprimida. Eu  sempre falava baixo e de forma lenta e eles me achavam esquisita. Eu realmente era, mas eles não precisavam me lembrar disso sempre. Aquele foi um dia perdido. Quando ela saiu depois de pagar a conta, eu me afundei em uma cadeira e todo o ensino médio voltou para minha cabeça.
— Você não devia ficar pensando tanto nisso — disse Alice.
— Tem razão, mas eu não consigo não pensar. —  Eu tava tão feliz, bom, na verdade eu não tava feliz mas eu tava bem.

Naquela noite eu não dormi nada. E acordei diversas vezes de madrugada com pesadelos. Maldita garota. Roubou meu namorado e ainda volta como se nada tivesse acontecido. Mas ela ia me pagar. Ah se ia.

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