Quarta - feira. Pelo menos metade da semana já tinha ido embora. Eu estava fechando o portão de casa quando ouvi meu nome.
Era Ângelo. À dez anos que eu não o via e agora ele aparece e resolve que é uma boa ideia vir até minha casa falar comigo. Seus olhos azuis me fitam.
— Será que eu posso te acompanhar até o trabalho?
Dei de ombros. Passei por ele e ele me seguiu. Por todo o caminho ele expeliu frases que se assemelhavam à crimes contra a vida humana.
Eu nada dizia, só respondia com "uhum", eu não sabia o que falar para ele. Era emoção de mais, misturado à ódio e confusão. Em um determinado ponto ele parou e segurou em meu braço. Me olhando profundamente ele disse:
— Você não precisa falar comigo se não quiser, mas bem, eu queria te pedir minhas desculpas. Você sabe pelo o que. Esses dez anos não tem sido fáceis para mim."Pobrezinho"
— Eu tive um filho, me casei, passei por crises no trabalho, sabe, a vida não tem colaborado comigo.
"Se a vida tivesse colaborado com você, você estaria morto para a felicidade geral "
— Não precisa se justificar para mim. O que você fez ficou no passado junto com o sentimento que eu tinha por você. Você não me deve nada, nem mesmo suas desculpas.
Me soltei de seu aperto e caminhei até chegar no Café.Para minha surpresa Alice já estava lá. Por um instante pensei que ela e Noel pudessem estar tendo algo, mas imaginei que se eles tivessem ela me contaria ou talvez não. Balancei a cabeça e fui me vestir, quando eu saí Alice me encarou.
— Você foi não é?
— Fui.
Alice esticou a mão para Noel que lhe entregou uma nota.
— Vocês apostaram se eu ia ou não?
— Desculpa. Mas como que foi lá?
— Foi péssimo — disse me sentando na cadeira — Quando eu cheguei estavam todos em um círculo falando de suas vidas na escola e na minha vez eu me levantei e saí.
— Você saiu?
— Uhum.
Alice estava desapontada e eu também. Eu esperava muito mais, digo, eu esperava... Nem mesmo eu sei o que eu esperava, provavelmente um pedido de desculpas de todos por tudo o que fizeram comigo mas não aconteceu e eu me senti estúpida por ter ido até lá.Me senti angustiada por ver Ângelo. Eu sentia tantas coisas ao mesmo tempo que eu nem sabia explicar sobre.
Se eu pensasse muito eu ficaria maluca, mais do que eu já era. Aquelas pessoas despertavam o pior em mim, eu demorei muito para armazenar a criatura dentro de mim e agora eles apareciam e ela queria se soltar outra vez.
Mas eu não podia deixar, se eu deixasse, o estrago seria muito grande e eu teria que me mudar.
Alice abriu o Café e eu dei uma ajudinha para Noel. Eu gostava muito dele e de Alice, eles foram os únicos que me trataram bem no emprego e quando pude trabalhar com os dois eu me vi em uma maré de felicidade repentina, eu não era feliz todo dia e muito menos sempre, mas eles me alegravam sim. Nós cortavamos salsichas quando Alice disse que uma mulher loura queria falar comigo. Limpei as mãos no avental e sai para falar com ela. Era Bianca. "Meu Deus, essa menina não desgruda de mim?"
— Tá tudo bem com você? — perguntou em tom preocupado que quase me fez acreditar que ela realmente se importava.
— Tá sim, por que?
— É que você saiu correndo ontem. Achei que alguma coisa tinha acontecido.
— Não, eu só não queria ficar mais.
— Mas por que?
— Porque não, eu não preciso de motivos — respondi irritada. Pela primeira vez eu levantei minha voz. — Se você não for comer nada é melhor você ir embora.Como eu detestava ela. Eu daria qualquer coisa para ela sumir da minha vida, ela e os malditos amiguinhos dela.
Ela fechou a cara e saiu do recinto. Me senti muito mais leve.
— O que é que foi aquilo? — riu Noel — Você botou pra quebrar. Gostei disso.
Alice riu conosco. Sim, eu ri de novo.◇◇◇◇
O movimento na quarta ficava bem fraco e naquele dia não foi diferente. Nós aproveitamos para ir ao mercado nas quartas para compar o que faltava. Aquela semana era minha vez. Eu não sabia se ficava feliz ou não por isso, sair na rua era correr o risco de encontrar com alguém da minha turma e encontrar com eles podia não ser uma boa.
Com a lista em mãos, eu caminhei nos corredores, conferindo cada prateleiras, o carrinho estava quase cheio quando cheguei no açougue.
— Magarya, vai querer o que? O de sempre?
— Isso aí Marcos.
Marcos sumia e voltava trazendo as carnes no corte e peso certo. Marcos era tão gentil, uma vez ele até me convidou para sair, mas não deu certo, funcionavámos melhor como amigos e ele era um bom amigo. Certificando-me de que estava tudo no carrinho, andei até o caixa. E por alguma razão enquanto a compra passava eu percebi que um colega de sala não estava na reunião do outro dia. O que teria acontecido?
Paguei a moça do caixa e pedi que entregassem a mercadoria no Café.
Andando de volta pro trabalho, eu pensava no que teria dado se eu não tivesse indo embora. Talvez se eu tivesse dito todas a verdades e jogado tudo na cara deles e depois saído vitoriosa e me sentiria uma mulher perigosa, mas por outro lado eu poderia ter me saído como a idiota da sala que não se conformava com a sua vida. Para ser bem sincera, eu insistia muito no assunto, falava comigo mesma sobre isso e eu sempre me irritava. Eu não deixava o passado morrer. Esse era meu maior defeito. Mas como eu ia enterrá-lo se ele me visitara em casa e no meu serviço? Quando eu cheguei Alice atendia alguns clientes que podiam refeições rápidas para ir ao trabalho, a maioria estava atrasada. Mais uma vez na cozinha ajudando Noel ele me disse:
— Essas suas pálpebras caídas te dão um ar de desinteresse e sono. As vezes quando eu estou falando com você nunca sei se você está ouvindo ou apenas viajando, como agora.
— E você quer que eu faça o que? Cole fitas nos olhos?
Encarei-o. Todos diziam que eu assustava as pessoas com meu olhar "morto", eu não achava isso. Para mim eu era normal, com olhos normais e sentimentos normais. Mas Noel e Alice diziam que eu era demasiadamente estranha, mas uma estranha que eles gostavam muito. Eu não sabia se tomava aquilo como elogio ou outra coisa. Mas sempre agradecia. Era muito estranho como meus pensamentos vagavam rápido. Em um momento eu pensava sobre algo e no outro pensava em algo completamente diferente do que estava pensando antes.
— Mas sabe, eu não sei o que fazer, essa receita nunca dá certo, queria fazer para por no cardápio mas sempre sai algo de diferente e bagunça com todo a receita.
Noel falava comigo, mas eu não ouvi metade do que ele disse.
— Já tentou mudar de ingrediente? Ou mudar a quantidade?
— Na verdade não. Talvez dê certo.
— É claro que dá.Maluquice apenas. Droga, pensar sempre me atrasa, tenho que parar de fazer isso com tanta frequência.
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contos da meia noite
Mystery / ThrillerUma série de contos, não de terror, mas que fazer a mente voar alto. Nem sempre a realidade vem a calhar. Vocês acham que real e sobrenatural estão conectados? Não são histórias longas, para que sejam lidas com fluidez e compreensão, algumas até p...