Homem da Luz (Prévia)

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A noite gélida chegou com rápidez, de maneira tão de repente que pareceu que a tarde durou pouco. Enquanto lutava contra o sono, eu a via contando suas histórias, como de costume antes de dormir, da cama.
"Há milênios, muito antes da cidade ser construída, o mundo não era como conhecemos hoje, cheia de plantas, e água, e vida. Até mesmo o ar era composto de poeira, e portanto restava apenas a terra como companhia. Olhar para um céu azul e limpo tornou-se impossível, era densa, como uma forte neblina. Mas ali, ainda vivia tal ser humano, restava um, um com poderes divinos, dizia os velhos feiticeiros. Segundo eles, sua aparição teve como objetivo o confronto entre outra divindade. Costumam chamá-lo de Akayrc, porém têm-se outros nomes, como Amaruy ou Akamaruy, dependendo da região.
O que o reservava para um confronto era Mórgara, uma assombração, fruto de magia negra poderosa, com habilidades que também eram considerados divinos através do corpo de uma mulher. Ela era coberta da cabeça aos pés com tecidos pretos fúnebres ao redor, que exalava magia, e sua pele, grotescamente pálida. Seus olhos avermelhados desmontravam tamanha crueldade, tanta que só de encará-la o fazia estremecer. Ela, hoje em dia, é conhecida como Mórgara, a Destruidora de Feitiços, ou, a Deusa do Fim.
Não havia nenhum outro elemento que pudesse ajudar Akayrc no duelo, pois na época não existia nada além dos elementos Luz e Sombra. E o portador da Luz era o próprio, e o da Sombra era Mórgara. Seria uma luta intensa e muito difícil para Akayrc, Mórgara tinha fins de aniquilar o resto de todos os outros mundos que existem, determinada a matar, para que pudesse fortalecer mais seus poderes maléficos. Akayrc, um homem esbelto e forte, tinha de interromper seus planos, se não toda a humanidade e a magia seriam extintas. A batalha foi épica do começo ao fim. Era Luz contra Sombra, o dia contra a noite, o Sol desafiando a Lua.
Com ambos usando seus feitiços, um para o bem e outro para o mal, o futuro estava em jogo. Se Akayrc perdesse, seria o fim dos elementos, e de nós. Durou equivalente a quase um dia inteiro, e quando esteve prestes a ser derrotado, o Homem da Luz lançou a Mórgara um último ataque, que por sorte fatal. Mas em troca teve de ir junto dela, pelo impacto das duas magias. Portanto a explosão estendeu-se por toda a área, espalhando mais destroços do que se possa imaginar. Por décadas, nosso mundo ficou assim, do mesmo jeito, destruído e repleto de falhas, no entanto havia algo de diferente nele, o ar havia mudado, a presença de água era visível, e toda a vida enfim cresceu, tornando todo o território belo e satisfatório de analisar seu processo.
Assim, todos os elementos naturais foram criados: Fogo, Água, Ar, Terra, e Relâmpago. Cada um compostos da própria essência de magia. Incluindo os elementos Luz e Sombra, eles não foram extintos, todavia são raros. E é por isso que nossa cidade é tão sagrada, pois ela foi fundada acima do mesmo terreno que se originaram as magias."
Quando fui me dar conta, já havia dormido, em volta do calor dos braços da minha mãe, tão inocente.
Minha infância foi cheia de lendas, e eu tinha uma adoração enorme sobre elas. Todos as noites, ela fazia questão de me contar as histórias que sabia, muitas delas foram passadas por gerações da família, e outras pela cultura do lugar. Por outro lado, com o meu pai, longe dos mitos, quando eu era criança o via sempre trabalhar nas colheitas. Eu não enxergava graça, mas pensando bem deveria ter valorizado mais. De certa forma era complicado nos darmos bem, temos pensamentos diferentes desde quando fui pequeno. Certo dia, houve um ataque contra a cidade, meu pai reforçava as janelas e portas de madeira com mais madeira, para garantir proteção a mim e a minha mãe. E ficamos lá, unidos, aguardando todo o mal passar. De acordo com relatos antes do conflito, havia uma horda de monstros a caminho, monstros estes feitos dos restos da magia da Sombra.
Aguardamos por um tempo enquanto ouvíamos ruídos, fortes estalos de madeira e gritos até que tudo se silenciasse. É claro que estávamos com medo, porém eu era o único que não sabia bem do porquê. Eu era muito novo para entender dos perigos. Quando achávamos que tudo se normalizou, ouvi o grito da mãe vindo da cozinha da casa, logo, desesperado, meu pai largou seu serviço de retirar as tábuas presas e correu afim se socorrê-la. Mas foi tarde. Ela jazia morta ao chão encostada na parede. Meu pai em choque transformou toda a tristeza daquele momento em fúria para vingá-la da criatura. O monstro continha presas e garras afiadas além de asas grandes, olhos vermelhos e um par de chifres demoníacos. Sabia, traumatizado, que meu pai não daria conta, entretanto, quando tive coragem de me aproximar, vi, ele ferido, e a cabeça do monstro cortada pelo pescoço com um único golpe da serra de tábua. Toda a sua raiva descontada foi o que nos salvou da morte, se não fosse por isso, certamente estaríamos juntos da mãe.
Ele assentou-se e chorou, com ambas as mãos no rosto, feito garoto. Não ligou para a dor do ferimento, apenas se concentrou no que sentia por dentro. Naquele momento percebi que teria que amadurecer muito, e de ser resistente. Pai precisava de mim mais do que tudo nesse mundo. Notei lágrimas escorrerem pelo meu rosto, no entanto me mantive inexpressivo, inconscientemente. De repente o corpo sem cabeça avançou em nossa direção, rápido me pus em frente do meu pai para protegê-lo, e a visão escureceu. A garra fincou-se na minha barriga, e um estranho brilho percorreu as veias do monstro em direção a dentro de mim. Quase perdendo a consciência vislumbro outra luz, era fogo! Era magia! A criatura ardeu em chamas até desaparecer, e quem originou tais truques mágicos deu às caras para nos socorrer.
...
Eu estava em coma, tentando lutar para viver, a minha frente só havia breu, escutava alguns sons abafados que não foram possíveis distingui-las, e nada além disso. No meio da escuridão que eu enxergava, aos poucos foi se aproximando um ser humanoide feito de luz. Se assemelhava como um monstro, mas por alguma razão eu não tinha medo. Assim que se aproximou o bastante estendeu a mão, grossa e pontiaguda, e sussurrou "se deseja viver... terá que conviver conosco". Essa parte não me recordo tão bem, não sei dizer exatamente o que ocorreu depois da fala, contudo, aparentemente devo ter aceito, pois eu sobrevivi.
Muitas infermeiras haviam dito que foi um milagre eu estar consciente, e que era surpreendente a minha recuperação fluir tão rápida, pois em apenas duas semanas desde que acordei já voltei a andar. Mesmo com pouca idade, sentia que alguma coisa estava estranha, diferente. Meu pai óbvio que ficou emocionado com o meu retorno, frágil ou não ele me abraçou bem apertado por um longo tempo, agradecendo aos deuses por eu estar vivo. Não demorou muito para que pudesse voltar para casa, mas eu não estive ansioso nem animado, não sentia nada. Fiquei nesse estado há muitos meses.
A morte da mãe despertou um gatilho enorme para o pai, que agora me vigia dobrado todos os dias, e mesmo com os meus 16 anos hoje, ainda continua. No fundo sei que é com razão, porém falta um pouco mais de privacidade.
Como se não bastasse adquiri poderes malignos possivelmente extraídos do monstro. Sabemos muito pouco da maldição, e por isso temos que ser cautelosos. Um dia, fiquei furioso com a cabana improvisada de folhas e galhos que eu praticava no quintal, cujo sempre caíam quando finalizadas, e então esbanjei dentes pontudos tenebrosos e com a íris dos olhos vermelhas da cor do sangue. Esta foi a primeira vez que se manifestou. Felizmente poucas pessoas viam o ocorrido enquanto meu pai fazia de tudo para me acalmar, no entanto foram minutos desesperadores de se conviver. Uma parte dentro de mim havia se transformado em uma criatura sombria, a sensação, é sufocante e pesada. Tornou-se a primeira revelação de muitas com o passar do tempo. Até que comecei a estudar em casa, me confinei para evitar novos desastres porque gradualmente perdíamos o controle, ou eu mordia algum desconhecido com minhas presas de monstro, ou destruía camelôs com uma força sobrenatural. Nem mesmo minha professora escapou dessa situação. E progrediu assim, confinado, até eu fazer 16 anos de idade.
Mau sabia o que estava por vir este ano, pensava que seria mais um ano como tantos outros. A rotina é a mesma todas as tardes, ontem caminhava pela feira para comprar frutos e legumes, feira esta que se localizava no centro da cidade, uma praça gigantesca com a estátua do Homem da Luz incluso. Me deparo com uma cena deprimente, uma vendedora qualquer sendo caçoada por dois homens maiores que ela. Claro, não podia deixar que zombassem dela.
- Ei, vocês dois aí, deixem ela em paz!
Intimidado, o mais forte da dupla cuspe nas verduras que o próprio amassara, e me encara.
- Quem você pensa que é para falar dessa maneira conosco? Segue seu rumo, ou vai querer apanhar, pirralho? - riu.
Abaixei a touca da blusa, e fiz questão de manter contato visual, como ameaça.
- Acho que quem irá apanhar aqui seram vocês! É melhor não me subestimar.
- É o garoto monstrinho, não é? Sendo assim, mostre-me a fera que é!
Cerrei os punhos, enquanto um deles avançava perante mim, sentia meu sangue esquentar, pois, as presas surgiram. Desviando do soco o ergo pelo braço e o arremesso ao chão, e no momento seguinte golpeio o queixo do segundo que me ameaçou. Um ataque por trás logo seria introduzido, entretanto antes que tivesse chance de acertar meu rosto, agarro seu punho fechado e torço toda a articulação do braço, fazendo-o recuar. Devido a um deslize, um soco na minha barriga foi garantido. Agora verás o monstro. As pupilas se esticaram, e o vermelho tomou conta da íris de ambos os olhos. O problema da transformação é que mal tenho controle sobre o meu próprio corpo, e portanto salivava demasiadamente. O resto era rezar que nada de ruim acontecesse.
Os dois rapazes estavam prestes a atacar, e com as duas mãos, uma para cada, os arremessei brutalmente um para uma tenda e outro para uma parede de concreto, deixando para trás apenas poeira pelo ar e estragos. Certamente agora estariam inconscientes, ou pelo menos abatidos. Lembrei de imediato que precisava voltar a tomar posse do corpo. Ao meu redor fuzilavam olhares de medo perante mim, mas não importa, já estou acostumado. Após alguns segundos, sentia-me sóbrio, como humano, não mais monstro.
Certifiquei se aquela vendedora estivera ferida, e não. Recolhi minha cesta dos frutos e legumes que comprei e me encaminhei em direção a minha morada. Porém, por extinto, senti a presença de magia vinda pelas minhas costas, portanto rapidamente me virei.
- Ora, ora, o que temos aqui? Mais um com propriedades da Sombra, isso? Vi tudo o que fez com aqueles caras, devo meus parabéns.
Haviam dois... dois feiticeiros que exalavam magia poderosa, uma mulher e um homem, ele tem cabelo ruivo caracolado e barba pequena, enquanto ela parecia ser mais velha e sábia com seus espessos cabelos pretos trançados, ambos usavam o mesmo uniforme.
- Seguinte, recebemos ordens para que viesse conosco por bem ou por mal a nossa escola de magia. Tá sendo procurado há um tempo, sabia? Portanto se resistir teremos que pegar pesado. Não quer isso, não é? - Alertou a moça.
- Vê se não apronta, ouviu? - Prosseguiu o ruivo - Aliás, desculpa o mal jeito, me chamo Hallen e essa ao meu lado chama-se Narabel, a trate respeitosamente. Qual o seu nome, garoto?
Nítido que não conseguiria detê-los, bastava correr, mas as opções continuariam arriscadas.
- Me chamo Yitaro! Sou daqui mesmo, da cidade de Crysparks.

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