Ode a TDAH

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"Olhe, eu não queria ser um meio-sangue..."
A primeira vez que li isso foi no livro "Percy Jackson e os Olimpianos: O Ladrão de Raios" de Rick Riordan. Um livro de literatura infanto-juvenil da primeira década dos anos 2000. Nele acompanhamos a história de Percy, um garoto com TDAH que se descobre semideus, filho de um dos deuses gregos. Já parou para pensar como algumas coisas parecem que surgem no momento em que damos um nome a elas? Aos 8 anos eu não sabia o que era TDAH, eu mal sabia o que eram as letras. Tarefas da escola sempre me forma enfadonhas e complicadas, tantas letras e números em um só lugar tendo de serem colocadas em determinada ordem para os professores dizerem: "parabéns, você fez a tarefa." Fazer isso quase me causava dor, mas o que mais doía era ter que ver as outras crianças que terminaram a tarefa "na hora certa" no parquinho da escola brincado com balanços, escorregadores e gangorras enquanto a professora dizia que por eu ser preguiçoso não podia brincar com elas. No fim da aula eu precisava ficar uns bons minutos a mais terminando, o que segundo ela eu devia "ter terminado há 40 minutos" e depois de todo mundo já estar confortável em suas casas assistindo fim da programação de desenhos da manhã, eu caminhava através do portão da escola até minha casa demoradamente, pois já sabia o que me esperava. Ao chegar em casa me deparava com minha mãe sentada à mesa com meu almoço já frio no prato em cima da mesa da cozinha com o resto sério e rígido como o mármore. "Não acredito que ficou por último de novo" ou "você não tem vergonha não?" eram as frases clássicas, mas sempre havia a possibilidade de inovar. Minha favorita foi "como eu, tão trabalhadora, pude ter um filho preguiçoso assim?" seguido de um sermão sobre levar os estudos a sério e passar a tarde sem poder ligar a TV, o videogame ou sair na rua para poder brincar com as outras crianças. Toda semana esse ciclo se repetia e se repetia e eles continuavam me culpando, será que eles acreditavam que eu era tão masoquista assim? Será que eles achavam que eu simplesmente gostava de ficar por último na escola, de não pode brincar no balanço ou de não poder ligar a TV? Eu era só uma criança e nenhum adulto percebeu haver algo de errado?

Agora tenho 13 anos, acabei de chegar da escola. Quando os professores param de cobrar que eu tivesse todas as tarefas feitas? No sexto ano? Talvez no sétimo? Não importa. Minha mãe me deixou uma longa lista de tarefas e amanha seria a apresentação do trabalho de ciências, isso me empolgou a semana toda, mas hoje, por algum motivo isso me travou, deitei no sofá, passei a tarde de uniforme assistindo TV, primeiro o fim dos desenhos da manhã, depois o telejornal, depois as séries comedia, os programas de fofoca, o filme da tarde, a novela das 5 horas, a novela das 6 horas e finalmente escuto o portão bater, nada da lista que minha mãe me deixou foi feito, nesse momento o arrependimento corrói cada célula do meu corpo! Por que eu não fiz nada? Por que eu não levantei e fiz as tarefas? Por que eu perdi a tarde toda com programa de TV que eu nem gosto? Tarde de mais, escuto minha mãe adentrar a porta da cozinha, o primeiro passo seguido de um berro: "AAHHHHH LUCAS! VOCÊ GOSTA MUITO DE ME OUVIR GRITAR NÉ?" Minha mãe passa os próximos quarenta minutos gritando, brigando e xingando pelo fato de que não fiz nada do que devia, mas não sei explicar, parece que uma força dentro da minha cabeça me manteve travado no sofá o resto do dia me deixando inútil, preso numa crise que oscilava do remorso de não estar sendo produtivo para o hiperfoco que não me permitia desligar a TV.

Agora tenho 17 anos, chegou a hora do vestibular, entrar em uma boa universidade, "ser alguém na vida" dar orgulho para família. Mas o que houve de errado, em janeiro fiz meu plano de estudo, eu ia passar naquela bela faculdade federal que eu queria, por que já estamos em novembro? O que eu estudei? Como assim eu nem li o edital da prova? Como assim eu nem sei o que cairá?
Eu sempre ouvi muito bem as coisas, nunca precisei estudar para tirar notas regulares no ensino médio, percebo que nem sei como começar a estudar.
Termino a prova depois de uma noite não dormida, todas as questões foram chutadas, não preciso ver o gabarito para saber que não consegui nota nem para passar pela porta daquela universidade. Chego em casa, minha família me olha com olhar de decepção e novamente penso "O que há de errado comigo? Por que eu não simplesmente segui o cronograma de estudo?" O remorso me consome e eu quero me afundar na cama para ver se isso passa.
Agora tenho 27 anos, o que antes os adultos chamavam de preguiça, desinteresse e frescura, eu descobri que tem nome: TDAH: Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, parece que meu cérebro não funciona como devia. A boa notícia, tem tratamento, a má notícia, eu não tenho dinheiro para tratar. Concluí a faculdade particular, mas não atua na área, trabalho numa loja onde há trabalho demais e salario de menos, tentei fazer muitos concursos públicos. Parece que esses concursos são a "grande chance do pobre melhorar de vida." Contudo, me deparo com outro problema, preciso estudar.
Chega a ser uma piada de mal gosto, eu preciso executar uma tarefa que exige ATENÇÃO EXTREMA para poder ter alguma chance de tratar meu cérebro que não consegue se concentrar. Mas não é só isso. Estou há 4 horas tentando estudar, minha esposa está no quarto ao lado aguardando eu terminar minha noite de estudo intenso e cá estou eu, escrevendo esse texto bem medíocre, acreditando ser um treino para prova de redação do concurso publico que prestarei no final de semana. Ela espera que possamos melhorar de vida, tudo que preciso fazer é o que venho falhando miseravelmente nos últimos vinte anos da minha vida, sentar e me concentrar na porcaria de uma tarefa cuja qual eu já sei que fracassarei. Um homem de 27 anos medíocre, num emprego medíocre, falhando em mudar sua vida medíocre.
Olhe, eu não queria ter TDAH...


Ode a TDAHWhere stories live. Discover now