O homem e a besta

15 0 0
                                    

Acordo suado e alerta pondo a mão na espada que trago comigo desde o início da jornada. Tudo o que vejo, porém, é o silêncio da noite e a luz triste do luar cortada pela fumaça que sai da fogueira apagada. A besta continua fora do meu alcance no mundo real embora esteja me perseguindo no mundo dos sonhos. Preciso encontrá-la a todo custo. Preciso vingar a morte da minha amada esposa e do meu precioso filho massacrados.

É o ano da graça de 1452 e seres das trevas assolam os homens. Bruxas, necromantes, vampiros e criaturas cuja forma escapa à compreensão humana. Uma delas cruzou o meu caminho alguns meses atrás no vilarejo tranquilo onde morava. Um por um todos os moradores foram mortos. Alguns tiveram seus corações tirados do peito ainda vivos, outros foram cortados ao meio. Minha família também foi atacada e minha esposa grávida e meu filho ainda pequeno foram dilacerados. Deus, se ao menos eu tivesse chegado mais cedo da caça.

Por algum motivo eu fui poupado. Tudo que me lembro antes de perder o rastro da besta durante o ataque foi uma voz na minha cabeça que disse:

- Portador da marca de Caim nos encontraremos novamente.

Obtive pistas que me levaram ao paradeiro da besta e acredito que a encontrarei amanhã ao anoitecer no vilarejo a poucos metros. A fera tem hábitos noturnos de modo que é possível prever seu comportamento.

O sol não demora a nascer então preparo a montaria e sigo cavalgando até alcançar a entrada do vilarejo. Ao entrar, percebo que tudo lembra muito meu próprio lar agora destruído e coberto de luto. Procuro uma taverna para evitar os devaneios. Evito álcool para manter os sentidos intactos e como apenas o suficiente para a tarefa que pretendo cumprir. Percebo os olhares dos homens ao meu redor, desconfiados e até chateados ao verem um forasteiro. Se soubessem do perigo que os aguarda não se importariam com essa trivialidade. Ao sair alugo um quarto em uma pousada qualquer e espero o anoitecer.

Depois de algumas horas, o sol dá sinais que pretende se recolher no horizonte. Preparo minha espada, meu corpo e minha mente para me encontrar com a besta sob a expectativa de ter acertado a previsão. O anoitecer se aproxima e como em qualquer vilarejo traz consigo o silêncio. Eu apenas espero.

A noite se torna mais densa e o silêncio ensurdecedor. Quero decepar a cabeça da fera e guardar como troféu. Quero dilacerar seu corpo abominável assim como foi feito com minha família. Quero... Ouço um grito de terror ao longe. O ataque da criatura começou. Me preparo para o combate.

Passo por pilhas de corpos, casas destruídas e poças de sangue por toda parte. Sigo o rastro da besta até que finalmente avisto-a tirando a vida de uma de suas vítimas. Quando chego, espada em punho, o monstro olha diretamente para mim. Olhos vermelhos como sangue, garras em dedos longos e esqueléticos em um corpo ereto como de um homem. Seus lábios não se movem mas ouço sua voz na minha cabeça:

-Portador da marca de Caim finalmente nos encontramos.

- Calada, besta! - grito com toda a fúria - Esta será sua última vítima e a minha espada será a última coisa que você verá.

- Humano fraco. Ainda não sabes que és portador da maldição de teus ancestrais? Quando olhas para o precipício, o precipício olha para ti.

Desfiro o primeiro golpe. A besta desvia mas com alguma dificuldade. Usa suas garras contra mim e me fere no braço esquerdo. Continuo lutando. Consigo atingi-la no seu membro inferior direito. Ela não consegue mais se mover com tanta destreza. Atinjo seus membros superiores e arranco-lhe um de seus braços. Ela cai de joelhos segurando seu braço decepado. Corto-lhe o outro e começo a gargalhar ao ver o sangue jorrar. Quando estou prestes a decepar-lhe a cabeça ouço sua voz:

- Filho de Caim, agora tua maldição te condena.

Aplico-lhe o golpe fatal e observo sua cabeça sair de seu corpo já mutilado finalmente vingando minha família. Contemplo a obra que acabei de terminar e os olhares assustados dos sobreviventes. Um sorriso de satisfação cobre o meu rosto. Quero dilacerar seu corpo repugnante, mas suas últimas palavras ecoam como uma trombeta na minha mente: "Filho de Caim, agora tua maldição te condena." Sinto que algo está errado e imediatamente uma dor aguda atinge meu coração.

Caio de joelhos sentindo agora algo ferver dentro de minha cabeça. Uma dor inexplicável toma meu corpo e me faz bater incontrolavelmente com as mãos no chão. Fecho meus olhos e deito de bruços, é como mergulhar em um lago de fogo. Quando a dor finalmente acaba e abro os olhos minha visão é vermelha como carmesim. Minhas mãos agora são garras e tudo o que desejo é... matar.

..........

"Quando você olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você."

Friedrich Nietzsche

Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: Jan 22 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O homem e a besta [CONTO]Onde histórias criam vida. Descubra agora