Prólogo

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Era uma noite de lua cheia, e o céu estava repleto de estrelas. No meio da floresta, uma fogueira iluminava o rosto de uma criança faltando poucos momentos para completar dez anos, suspirava nervosamente enquanto esperava dentro da oguassu. Ela escutava os gritos dos outros meninos e meninas menores que ela, todos ansiosos pelo ritual que iria acontecer.


O ritual sagrado só podia ser feito uma vez na vida. Era o momento em que ela receberia seu guardião, um ser místico que seria o seu companheiro, protetor e amigo para sempre. Todos sabiam que os guardiões podiam ter as mais diversas formas, desde animais até os próprios pais e mães da natureza. Eles até podiam ser um reflexo da alma e da imaginação dos seus portadores.

A menina olhou ao redor, procurando algo para distrair, quando o pajé a chama. A menina sentiu um frio na barriga, e uma mistura de medo e expectativa. Ela não sabia que tipo de guardião iria receber, mas não esperava que fosse algo grandioso e impressionante, como um jaguar, um condor ou uma serpente.

Ela ouviu o som de um berrante, que anunciava o início do ritual. Ela se levantou, e caminhou para fora da oca em direção ao centro da floresta, onde havia uma trilha de penas, folhas, galhos e outras coisas que ela não conseguia identificar até chegar numa enorme clareira onde havia um altar de pedra. Lá, estava o pajé, vestido com um manto de penas e um cocar de plumas, com várias pessoas da tribo um pouco afastadas, cada um com seus guardiões a esperarem. O pajé sorriu para a menina, e lhe estendeu a mão.

A menina pegou a mão do pajé, e subiu no altar. Um enorme homem de cabelos longos de fogo com os pés virados colocou um colar no pescoço dela, e se ajoelhou atrás da garotinha. O pajé ergueu os braços de frente dela, e começou a entoar um cântico em uma língua desconhecida. A menina fechou os olhos, e se concentrou na sua respiração.

Ela sentiu uma energia percorrer o seu corpo, e uma luz envolver o seu colar. Ela ouviu um som de asas, e um sopro quente no seu rosto. Ela abriu os olhos, e se deparou com uma visão que a deixou sem fôlego.

Diante dela, estava um ser magnífico, que parecia saído de um dos seus sonhos. Era um  filhote de pássaro, com penas coloridas e brilhantes que lembravam o entardecer. O pássaro tinha um bico longo e curvo, e olhos curiosos e sonolentos. Ele inclinou a cabeça, e tocou a menina com o bico, em um gesto de carinho.

A menina sentiu uma onda de emoção, e uma conexão profunda com o pássaro. Ela não sabia explicar, mas sabia que não precisava descrever a magnífica sensação de ter seu guardião, e que ela era a sua portadora. Ela sorriu, e abraçou cuidadosamente e carinhosamente o seu guardião . O pássaro piou, se espreguiçando, e se aninhou no seu colo.

O pajé sorriu, e anunciou em voz alta:

- Este é o guardião da criança. Ele é uma roça-íris, representa a harmonia, a alegria e a diversidade!

Todos os presentes e os guardiões rugiram ou gritaram e aplaudiram, as crianças menores gritaram ansiosas para serem as próximas. A menina tão feliz que simplesmente ignora os aplausos e gritos. Ela sussurrou:

- Obrigado, pequenino. Eu vou te chamar de… Arco.

Arco piou, e picou levemente o seu rosto. Eles se olharam, e se entenderam. Eles eram um só, e nada iria separá-los.

Mas essa felicidade foi interrompida, quando os homens de branco chegaram. Eles vieram de um lugar distante, onde a magia era perseguida, e extinta. Eles vieram com um propósito: explorar, dominar, e destruir. Eles vieram com uma arma: a violência, a mentira, e a traição. Eles vieram com uma ameaça para os indígenas.

Os homens de branco desembarcaram na costa das terras sagradas, e se espalharam pelo território. Eles entraram em contato com as tribos indígenas, e fingiram ser amigos. Eles ofereceram presentes, como espelhos, tecidos, e ferramentas. Eles pediram informações, como rotas, recursos, e alianças. Eles mostraram interesse, pela cultura e pela língua.

Mas tudo isso era uma farsa. Os homens de branco não queriam aprender, nem trocar, nem respeitar. Eles queriam roubar, enganar, e dominar. Eles queriam terras e riquezas.

Os homens de branco logo revelaram as suas verdadeiras intenções. Eles atacaram as aldeias indígenas, com armas de fogo, espadas, e canhões. Eles mataram, feriram, e capturaram os indígenas, sem piedade, sem motivo, sem razão. Eles os escravizaram, os torturaram, e os converteram, à força, à dor. Eles os separam, dos seus lares, das suas famílias, e dos seus guardiões.

Os guardiões eram o alvo principal dos homens de branco, após presenciarem sua existência. Eles os temiam, os odiavam, e secretamente os cobiçavam. Eles os viam como demônios, como hereges, e como tesouros. Eles os queriam mortos, queimados, ou aprisionados. Eles os queriam estudados, dissecados, ou controlados. Eles os queriam para si, para o seu poder, para o seu lucro sem se importar com o preço.

Mas os guardiões não se renderam. Eles lutaram com ódio, e com magia. Eles defenderam, os seus portadores, os seus irmãos, e seus lares. Eles resistiram, aos ataques, às torturas, negando-se a obedecer aos homens de branco. Eles se mantiveram fiéis, aos seus laços, aos seus valores, e aos seus portadores.

Mas os guardiões também se sacrificaram. Eles sabiam que os homens de branco não iriam desistir, e que eles iriam procurá-los. Eles sabiam que eles tinham mais armas, mais homens, e mais crueldade. Eles sabiam que eles eram uma ameaça, não só para seus portadores, mas para eles mesmos, e para toda a magia.

Então, os portadores tomaram uma decisão. Eles decidiram esconder seus guardiões, por amor, por honra e por esperança. Eles decidiram se afastar dos seus guardiões.

Os guardiões aceitaram se ocultar dos homens de branco, não antes de um arriscado truque para que tal sacrifício não fosse em vão.

Os guardiões se despediram dos seus portadores, com dor, com lágrimas, e promessas. Eles lhes disseram que os amavam, que os protegiam, e que os esperavam. Eles lhes disseram que não os abandonava, que não os esqueceram, e que não os traíram. Eles lhes disseram que eram um, para sempre, para o além, e para eternidade.

Os guardiões sumiram no meio da mata, onde nem mesmo seus portadores conseguiram encontrá-los, onde eles viveriam em segurança. Um lugar onde eles pudessem se proteger, se cuidar. Um lugar onde eles pudessem esperar, por um tempo melhor, por uma chance de voltar e por uma forma de vencer.

E assim, os guardiões se foram…

Se esconderam…

Esperaram…

Até a chegada de 1822.

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