Capítulo único

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"Estou aqui escrevendo essa carta a mão, da forma mais romântica possível. Mas essa carta não tem um teor tão romântico assim... Quer dizer, não tem o menor teor romântico.

Tudo o que tínhamos para conversar, já foi dito. Hoje, foi o último show que fizemos juntos, não terei mais a sua presença constante em minha vida, nem as suas reclamações diárias sobre as músicas que colocávamos no repertório da Gigantes, porque você sempre dizia que precisávamos de mais romantismo... Confesso que sentirei falta disso! Mas sabe do que eu sentirei mais falta? De nós. Do nosso encaixe, da nossa cumplicidade, da nossa loucura, dos nossos beijos, da nossa entrega na cama, do nosso amor, da nossa chama.

Eu espero, do fundo do meu coração, que você consiga me esquecer e seja feliz com aquela que você escolheu para casar. E assim o farei, vivendo com quem eu escolhi casar. Que o seu casamento seja tão feliz quanto nós éramos. E peço a Deus que o meu seja assim também, porque eu preciso esquecer o nosso nós definitivamente.

Eu, tola, achando que a primeira vez que nos separamos tinha doído, e que eu não iria sentir essa dor de novo. Ledo engano... Dessa vez doeu mil vezes mais. Nós tivemos o nosso filho, que foi o nosso projeto, e ele morreu. E junto com ele, mais uma vez se foi a nossa união. Você pode falar mil vezes que foi por conta do cara que eu escolhi para casar, porque ele estava com as rédeas de tudo. Eu te entendo e concordo... Mas você também entende que eu tomei esse posicionamento exatamente para deixar ele ocupado para que o nosso nós pudesse acontecer? Você também entende o porque de eu implicar todas as vezes que sua esposa queria vir para as viagens? Eu queria viver aquele momento com você com toda a intensidade do mundo.

Sabe o que eu sinto com essa nossa segunda separação? Que nossa relação dessa vez veio como um barco de papel, que nós tínhamos que cuidar para que não viesse nem uma gotícula de água e desmanchasse. Mas ela veio, e não foi uma gota, e sim uma enchente, um tsunami, que saiu arrancando tudo o que existia pela frente e nos deixou a ver navios. Um barco tão frágil que não deu nem para pegar os pedaços e juntar para salvar o que restou da gente. Não deu para nos salvar do naufrágio. Mas agora eu fiz um outro barco de papel para mim, e sigo minha vida daqui, com ele. E você... Bom, faz o seu barquinho de papel daí, e segue sua vida aí, com ela."

Não sinto tua falta.
Não sinto a faltado teu cheiro de perfume importado

que exportou de mim.
Não sinto falta
do teu erre puxado,
nem do teu beijo
gosto-de-dente
que morde coração-envenenado.

Não sinto tua falta.
Não sinto.
Nem lembro de você.

Nem da tua respiração ofegante.

Não sinto falta.

Eu sinto ânsia.

Distância

do teu signo-preto,

do teu silêncio-grito

Sinto ânsia.

E a provoco.

E enfio meus dez dedos

na garganta

pra ver se vomito teu ser

da minha alma.

Assim, Silvânia borrifa seu perfume na carta, coloca uma rosa e uma varinha, para representar a música deles, em cima da carta e sai do quarto de hotel, em direção ao aeroporto rumo a Aracaju.
Daniel, ao chegar no quarto, se depara com aquilo em cima da cama, curioso, foi ler, acreditando ser do hotel. Ao abrir, logo reconheceu a letra de sua amada. De início, ele riu da forma que a carta se iniciou, mas logo, o riso se transformou em lágrimas. Ele não conseguia entender em que ponto eles se perderam para a relação deles terminar daquela forma tão dolorosa. Ela tinha razão, a segunda vez doeu mil vezes mais que a primeira.

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