Debaixo dos Caracóis dos seus Cabelos

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São Paulo não estava pensando muito bem. Provavelmente por culpa da bebida. Era bom poder culpar a bebida por coisas que não gostamos de admitir nem para nós mesmos.

E, de fato, São Paulo estava muito pouco disposto a admitir que ele estava pensando no cretino do carioca. E menos disposto ainda a admitir que estava sentindo falta desse cara.

— Porra, a bebida antes de matar ela humilha mesmo – disse Paulo, rindo sem humor. Não acreditava que estava com saudades do namorado. Tipo, só fazia 2 semanas que ele tinha viajado com o Brasa. Não era tanto tempo assim.

Olhou para seu apartamento. Tinha uma garrafa de vinho agora vazia e uns papéis e materiais de escritório sobre a mesa da sala. Tirando isso, estava tudo organizado. Isso meio que estava irritando Paulo nesse momento. Por que estava tudo tão irritantemente calmo e organizado?

Olhou para seu relógio. 01:32 da manhã. Bem, pelo menos ele terminou de fazer tudo o que tinha pra fazer.

Se levantou e desligou a luz da luminária que ele estava usando. Já chega de tudo isso, hora de ir pra cama. Ele foi andando em passos lentos até o quarto, onde se sentou na cama. Olhou para a porta de vidro, observando a luz de sua cidade adormecida e ouvindo os poucos sons que a madrugada proporcionava.

Sons. Olhou para o canto. Um violão. Não qualquer violão. O violão dele. Ele deixou ali da última vez que foi lá. Respirou fundo. Droga.

— Eu devo estar bêbado mesmo.

Ele levantou e pegou o violão. Fazia anos que ele não tocava. O Rio fazia isso por ele. Ele sorriu com a lembrança do Rio cantando para ele. Jamais admitiria, mas amava quando o carioca era brega e meloso, cantando pra ele com aquela cara idiota que ele faz.

O violão fez Paulo se sentir nostálgico. Eles dois tinham tanta história.. E nem sempre foi um mar de rosas..

— Ou de lírios.. haha – ele dedilhou o instrumento – Porra, o que tinha naquela bebida?

Ele começou a brincar com as notas. Algumas lembranças, de quando eram só dois meninos aprendendo a ser gente. Histórias de amizade. Confidências. Amor. Separação. Mal entendidos. Brigas. Estranhamento. Redescobrimento. Perdão. Reconciliação. União.

— Mas então onde está você agora? – Paulo se sentiu infantil por falar isso em voz alta. Mas quem se importa? 01:50 da manhã, sozinho no escuro, não tem ninguém pra julgar ele. A não ser ele mesmo, mas se Deus quiser o álcool trata de me fazer esquecer isso.

De repente, ele lembrou de uma música. Uma música tão bela quanto triste, que ele costumava ouvir quando estava triste, e Rio estava com Lisboa.

— Aquele vagabundo.. Se eu encontro ele na rua... – só de lembrar o nome do cara Paulo já sentiu um gosto ruim na boca. – Tudo bem, tudo bem, já passou. Ele tá bem. Ele tá seguro com o pai. – Respirou fundo pela milésima vez aquela noite.

Acabou por ajeitar o violão no colo e puxar os acordes na memória. Depois de testar um pouco, ele começou a cantar, baixinho, olhando para nada em específico.

"Um dia a areia branca
Seus pés irão tocar
E vai molhar seus cabelos
A água azul do mar
Janelas e portas vão se abrir
Pra ver você chegar
E ao se sentir em casa
Sorrindo vai chorar"
Ele se viu imaginando seu amado. Lembrou de memórias antigas, dessa vez mais agradáveis. Rio - naquela época Guanabara – tinha os cachinhos mais lindos do mundo. Não que os dreads que ele usa hoje sejam menos maravilhosos nele. Talvez ele devesse elogiar mais o namorado.

"Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Uma história pra contar de um mundo tão distante
Debaixo dos caracóis dos seus cabelos
Um soluço e a vontade de ficar mais um instante"

Assim, do nada. (ONE-SHOT)Onde histórias criam vida. Descubra agora