quem eu conheço já não existe mais | único

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killua ouviu a porta da frente abrir e fechar com um clique, mantendo a cabeça baixa enquanto sentado no sofá de frente para ela. a falta de passos seguintes evidenciou que gon estava parado no mesmo lugar e não seguira seu ritual de dar um simples oi e se trancar no escritório outra vez, e killua teve muito de se controlar para não começar a rir sem parar do que estava prestes a acontecer.

— o que é isso? para que tantas malas?

ele levantou o olhar, descruzando as mãos somente para cruzar os braços. parecendo placidamente calmo ao ver a expressão de confusão no rosto moreno, anunciou:

— eu cansei do que está acontecendo.

— você está me deixando?

— te deixar? — killua soltou uma risadinha de teor sarcástico, negando com a cabeça levemente várias vezes como se fosse alguma pergunta boba antes de completar — quem vai embora daqui é você.

— [ 🎀 ] —

a primeira reação de gon foi arquear as sobrancelhas, logo passando para arregalar os olhos e tentar falar algo. provavelmente perguntaria o que estava acontecendo e por que ele decidira o expulsar de casa se killua não tivesse levantado o dedo em riste, no mesmo modo autoritário como fazia quando seu não era um não imutável para jiji. naquele caso, ele claramente estava dizendo que não queria ouvir nada vindo dele até segunda instância; gon andou até a cadeira que ficava por perto e se sentou, esperando que o albino começasse seu discurso. ele parecia tão nostálgico enquanto baixava a mão e levava-a para brincar com a aliança de prata que estava lá há tantos anos, desde tempos de ensino médio. não tinham trocado as alianças de namoro quando se casaram ou quando fizeram qualquer uma das bodas, nem mesmo a primeira — bodas de papel — ou a mais recente — bodas de porcelana.

killua soltou a aliança e voltou a encarar gon, respirando fundo.

— eu consigo te ver em cada canto dessa casa, sabia? — começou, alternando o olhar entre os detalhes da decoração escolhida com tanto afinco naquela época que ele mal sabia o que estava por vir. ele gostaria de poder dizer para o killua de vinte e cinco anos para ser menos tonto, mas havia sido uma história tão boa até três anos atrás; até mesmo jiji sentia falta dos tempos antigos. — consigo ter uma ideia de você em cada pedacinho. os bibelôs esquisitos que nós compramos porque achamos engraçados, os quadros que você pendurou com diplomas e fotos nossas para que nunca se esquecesse que éramos uma família, nós dois montando os móveis e pintando as paredes mesmo não sendo nada profissionais, você sentado naquela poltrona ali do canto olhando para fora da janela como se estivesse orgulhoso do que havíamos construído juntos. mas é só isso, uma vaga ideia, uma lembrança; o marido que me lembro não existe mais. eu já entendi isso.

ele buscou o copo de água que estava na mesa de centro, bebendo enquanto engolia aquela verdade juntamente ao líquido. falar em voz alta englobava entender e aceitar o fato que estivera fingindo ser mentira há três anos.

— mas eu estou aqui.

eu estou aqui. — o zoldyck corrigiu, batendo o copo na mesa em um raro momento de descontrole. — eu e jinah, enquanto você não está em lugar nenhum que não seja aquele maldito escritório! você chega em casa, dá oi e se enfia lá pelo resto das horas, saindo de fininho de manhã sem se dar o trabalho de tomar café comigo e com sua própria filha!

— não fale tão alto. ela pode acabar ouvindo você.

— você está tão presente que não sabe que há meses a jiji vai para a casa da yoko todas as tardes de sextas-feiras. que ela faz as unhas, o dever de casa, bate papo e lancha lá e que às vezes elas fazem festas do pijama. — ele observou o rosto moreno assumir uma expressão de leve culpa e confusão. — você está tão presente que não conseguiu identificar que se a jinah não veio tentar te dar um abraço, ela não está em casa. você está tão presente que não percebeu que tem outro quadro na parede com o nome dela ou que tivemos que aumentar os ganchos do quarto dela porque ela não para de ganhar as olimpíadas escolares. você está tão presente que não foi em nenhuma das corridas dela, ou na feira de ciências, ou na apresentação das poesias dela na escola. você está tão presente que no dia de apresentar seus pais na escola nova ela quis que só eu fosse porque não queria te atrapalhar no trabalho para pedir que movesse um dedo que fosse para fazer algo importante para ela. você está tão presente, gon, que ela ainda nem te contou que deu o primeiro beijo e que foi com uma menina e que ela gosta muito dela.

✧ SHOW ME HOW, killugonOnde histórias criam vida. Descubra agora