— Você sabe que eles irão nos punir, não é?
Os cantos dos meus lábios sobem levemente num sorriso contido e meus olhos se desviam por segundos para as mãos trêmulas de Gösrcha. A pobre garota está apreensiva e gira o rosto redondo de um lado para o outro, como se tivesse certeza de que seríamos surpreendidas por alguém a qualquer instante.
Mesmo com a pouca claridade de um amanhecer preguiçoso e abafado, seus cachos crespos balançaram como flores no campo, choveria em breve e se não fosse rápida o bastante a chuva iria estragar o penteado que havia feito mais cedo, encaro um cacho que escapa detrás da orelha e seguro o impulso de arrumá-los mais uma vez.
— Eles não nos castigariam por conta de algumas flores — digo mesmo sabendo que é mentira, se nós duas fôssemos pegas, iríamos para a praça de açoitamento e receberíamos a quantidade de chibatadas necessárias para o dano ser pago. Se a vítima do furto dissesse que se contentaria com 100 açoites, o carracho cumpriria a sentença até o último estalo.
Já vi acontecer por muito mais ou menos.
— Porque não pega as flores na beira da estrada? Há tantas e é no caminho de casa.
A menina tinha razão, eu poderia ter pegado as flores silvestres que cresciam na atual estação, principalmente as flores roxas salpicadas de amarelo que floresce próximo ao chalé Vela Vermelha, como nos anos anteriores. Acontece que neste ano específico, minha decisão tornava a data ainda mais significativa e a burrice que chamo de coragem, impediu-me de ir embora.
— Não são tão bonitas quanto essas, nem tão coloridas — mostro as pontas dos meus dedos que já estavam doloridas por conta dos finos espinhos fincados na pele.
— Isso não tem graça — ela enruga os lábios aborrecida, mas de qualquer forma eu sigo torcendo os finos caules e arrancando as flores mais pomposas e saudáveis que conseguia alcançar, colocando uma a uma no tecido esfarrapado estendido no verde gramado. — Mirjami? Por favor, vamos.
O suplício da minha companheira fez eu acelerar a coleta de mais algumas Amarílis brancas e assim que me dei por satisfeita, juntei as pontas do pano em um nó. Não tomei cuidado com os espinhos enroscando nos fios de lã e ignoro as pequenas fendas se abrindo no velho tecido, sei que posso dar o pano por perdido, acontece que o valor sentimental e o aroma floral e fresco que exalava das flores, faz com que meu coração se aqueça com a ideia de como ficará harmônico o arranjo que eu farei mais tarde.
Levantei-me rindo do estrago que ficou naquela parte do imenso jardim do lorde Erign, o velho gordo dos dentes de ouro sempre se vangloriava pelo horto que adornava sua grande casa. Balanço a saia do vestido tentando desgrudar os pequenos blocos de barro que se agarraram onde meus joelhos se apoiaram.
— Pronto, criança, podemos ir agora.
Gösrcha não moveu seus pequenos pés calçados pelas sandálias de couro, e pela respiração entrecortada, soube que no momento que saísse detrás do grosso tronco da figueira, deveria me preparar para pagar o preço pelo meu delito, seja o preço que fosse.
— Esperei ver quantas mais poderia carregar — passos pesados avançaram pela grama. — Pelo rombo que ficou neste espiral, foram muitas.
Instantaneamente as mãos dilaceradas de Niamh passaram por meus olhos, a pele retorcida com alguns dedos tão tortos quantos os galhos das árvores que sombreiam a nós.
— Poupe a criança — as palavras que consegui proferir soaram suplicantes e pateticamente fraca, abracei meu pacote, como se pudesse me defender com pétalas e espinhos.
Eu tracei toda minha vida durante as últimas madrugadas daquela semana e os diversos lugares que visitaria, só sabia por que os mercantes que pernoitavam na cabana gabavam-se quem deles teria percorrido as estradas mais distantes, navegando através dos mares mais bravios e enfrentado os climas mais extremos da terra. Eu não teria a chance de realizar nenhuma daquelas metas, não quando dei passos vacilantes e avancei para a visão do senhor da cidade.
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Assim foi
FantasyMirjami tem seu destino selado em uma fatídica manhã. Ela tem o amor incondicional de suas mães e irmãs, mesmo assim, ela possui duas certezas: 1) sua rebeldia é sua maior inimiga; 2) ela será a responsável por destruir si própria. Vivendo numa cida...