Santo Rosário

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Eu havia perguntado para elas por quanto tempo eu tinha "dormido". Precisava saber quanto tempo tinha se passado entre as minhas fortes dores e o momento em que eu acordei.

— Dahyun...já é madrugada. Você foi sedada e dormiu por várias horas. — Mamãe falou, segurando minhas mãos junto das suas e acariciando elas.

— É, Kim. Mas felizmente, você está bem. A maioria dos exames que os médicos  fizeram não encontraram nada.  Ainda faltam mais alguns, mas os principais dizem que você está ótima.— Sana diz com um brilho no olhar. Sua felicidade era genuína.


Fico feliz com a notícia. Eu ainda estava assustada com tudo que tinha acontecido, de modo que eu tinha medo até mesmo de fechar os olhos, achando que aquela dor iria voltar.

— E onde está o papai? — Eu pergunto.

— Ow! É verdade! Eu vou avisar pra ele que você acordou ! — Minha mãe diz e sai às pressas, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.

— Ele virou o hospital de cabeça pra baixo por sua causa. — Sana diz e deixa um riso escapar, se aproximando de mim depois que minha mãe saiu do quarto.

— O que ele fez ?

— Você se lembra dele ser o diretor do hospital ?

Meus olhos se arregalaram de surpresa. Eu jamais poderia imaginar. Sem saber o que dizer, eu apenas fiz que não com a cabeça.

— Oh, céus...eu tenho tanta coisa pra te falar. Mas enfim... — Sana puxou uma cadeira e se sentou ao meu lado, me olhando nos olhos, com uma de suas mãos sobre as minhas. — Ele estava de férias, mas quando você passou mal, ele veio correndo e mandou os melhores médicos do hospital cuidarem de você. Eu nunca vi o senhor Kim tão nervoso. Quase sobrou pra mim que nem trabalho aqui. — Ela brinca e deixa uma risada gostosa escapar.— Por falar nisso...quando você vai contar para eles que você não se lembra de nada?

O semblante dela muda. Sana me olha séria, apreensiva. Eu mal tive tempo de ficar feliz pela atitude do meu pai.

— Oh! Meu amor! — Meu pai entra dentro do quarto, caminha em minha direção e me abraça fortemente.

Ele aninha minha cabeça contra seu peito e afaga meus fios, ouço ele começar a fungar e quando finalmente rompe o abraço e se afasta, me olhando nos olhos, percebo que os olhos dele estão vermelhos e ele nem tenta disfarçar seu semblante choroso.


— Você nos deu um baita susto, mocinha! O coração do seu velho pai já não aguenta mais essas coisas.

— Me desculpe, papai. Eu sinto muito...— Digo abaixando a cabeça.

— Senhor Kim, o resultado dos exames...— Um jovem enfermeiro aparece na porta, dando três batidas.

— Oh...certo.— O mais velho diz— Eu tenho que ir, querida. — Ele se despede deixando um selar no topo da minha cabeça.

Depois que ele sai do quarto, encontro o olhar de reprovação da japonesa.

— Sana, por que você não vai para casa descansar ? Pode deixar que eu fico com a Dahyun. — Mamãe diz.

Quando ouço ela dizer isso, uma sensação estranha se forma, eu não queria que ela fosse embora.

— Certo, mas a senhora me avisa assim que ela tiver alta ?

Mamãe assente e Sana deixa um selar em meu rosto.

— Fica bem, Kim. E é melhor você obedecer todas as orientações dos médicos.

Aquela sensação se aflora. Eu queria segurar a mão dela e pedir para ela ficar, mas eu não fiz isso. Não consegui disfarçar meu olhar triste quando ela se afastou e virou as costas.

— Você vai voltar ? — Eu perguntei.

Ela se vira para mim e me olha com um lindo sorriso.

— É claro que sim.


Meu coração se aquece dentro do peito. Eu sorrio agradecida e vejo a japonesa cruzar a porta. Ela ainda estava utilizando o sobretudo por cima da camisola.

===
Mamãe ficou comigo no quarto até eu dormir. Eu acordei apenas quando já tinha amanhecido, quando ela entrou  no quarto e deixou uma bandeja com o café da manhã ao lado, na mesa de cabeceira.

— Bom dia, querida. — A mais velha diz, colocando a bandeja sobre o meu colo, ao ver que eu acordei.

Tinha um sanduíche de atum cortado em forma de coração e suco de laranja. Também tinha um pedaço generoso de queijo branco e um pote com salada de frutas.

— Mamãe...você está me tratando como se eu fosse uma criança.

— Mas você sempre vai ser o meu bebê. E nunca peça para uma mãe coruja ser menos coruja.

Eu deixo um riso escapar enquanto eu comia o sanduíche e no meio disso tudo, meu pai apareceu, entrando no quarto.

— Meu Deus, pai, você está com uma aparência horrível!

Ele sorri pra mim, seu cabelo  grisalho estava todo despenteado, seu jaleco todo amarrotado e seus olhos baixos por de trás das lentes  do óculos.

— Eu não consegui dormir. Fiquei a noite toda pensando se deixo você em observação ou não. Nos seus exames não aparece nada, mas como isso é possível ? — O mais velho pergunta, se sentando próximo dos meus pés, na cama.

— Taehyun...deixe ela comer. Isso não é uma conversa adequada para o café.

— Eu compreendo, meu amor. Mas não posso deixar de fazer essas perguntas. — Meu pai fica com um ar sério antes de continuar. — Dahyun, você bateu com a cabeça ou ingeriu alguma coisa que te fez se sentir mal ? Pode ser qualquer coisa...comida ou bebida. Até mesmo algum medicamento.

— Não, papai. Eu simplesmente acordei assim.  Eu devo ter tido uma crise de ansiedade por causa do consultório...

Minha desculpa deve ter funcionado melhor do que eu imaginei, porque meus pais se entreolharam durante bastante tempo enquanto consideravam essa possibilidade.

— Ela tem razão, Taehyun. Tudo está acontecendo tão rapidamente nesses últimos dias...e a nossa menina tem trabalhado feito louca.

O mais velho olha para o vazio e fica calado, envolto em seus pensamentos. Até finalmente voltar sua atenção para mim e dizer:

— Como médico, o mais certo a se fazer era eu te dar alta, já que clinicamente não existe nada que me faça te fazer continuar aqui. Mas como seu pai...


— Papai, você não está de férias? Você pode cuidar de mim o dia todo, lá em casa. Não tem porque me deixar aqui. — Falo forçando um sorriso e me sento sobre a cama, colocando minhas mãos sobre as dele. O mais velho abre um largo sorriso  e assente.

— Tem razão...então eu irei providenciar a sua alta. Mas saiba que vai ter que ficar em repouso absoluto. — Ele diz e se levanta, caminhando até a saída.

Eu estava feliz por não ter que ficar naquele lugar. Eu odiava o cheiro de éter hospitalar e aquele ambiente pesado. Como se eu já não tivesse problemas o suficiente...

— Finalmente iremos para casa, querida.  — Minha mãe se levanta e me abraça bem apertado. — Quero que você faça muito repouso. Você vai ficar a semana inteira em casa, descansando.


===

Chegar em casa foi um verdadeiro alívio. A única parte ruim é que minha mãe teve que ir trabalhar, em seu escritório. Então, só eu e meu pai voltamos para casa. Eu fui para o meu quarto pegar roupas limpas e passei um longo tempo debaixo do chuveiro. Eu até pensei em experimentar a banheira, já que eu nunca tinha entrado em uma antes, mas ela demoraria demais para encher, então, eu apenas abri o chuveiro em sua potência máxima. Queria que a água quente revigorasse as minhas forças e de alguma forma, esquecer que tudo aquilo tinha acontecido. Mas eu sabia que estava mentindo para mim mesma...

Quando eu saí do banho, decidi fazer um tour por aquela casa. Eu precisava saber onde tudo ficava, já que eu não podia ficar perguntando para ninguém onde as coisas eram.

Eu saí do meu quarto e comecei a andar pelo corredor. Tentei abrir uma das portas e me deparei com um closet. Ele era enorme. Tinha diversas roupas e sapatos e até mesmo jóias. Fiquei na dúvida se ele era meu ou da minha mãe, ou talvez até algo compartilhado pelas duas. A próxima porta era a do quarto dos meus pais. Assim que entrei dentro do quarto, senti um cheiro maravilhoso de limpeza. Também notei um aromatizador de ambiente em cima de uma das cômodas. Ele tinha uma fragrância de flor de cerejeira.

Ao lado da enorme cama de casal, tinha um porta retrato com a foto do casamento dos dois. Eles estavam tão felizes. Era possível sentir a alegria deles naquele momento. Eu peguei a foto para olhá-la mais de perto e não pude conter o sorriso que se formou em meu rosto. Eu coloquei ela no lugar e sai do quarto, voltando para o corredor. A última porta era a do quarto de hóspedes, pelo menos, eu acho que era. Não tenho certeza.

Tive que parar as minhas andanças quando o meu celular começou a tocar. Eu voltei correndo para o quarto para atendê-lo a tempo. Assim que peguei o aparelho, vi que era Sana quem estava me ligando. A minha outra eu tinha salvado seu contato como "Best".

— Alô ?

— Alô nada! Eu tô muito p da vida com você! — Ela tenta fingir que está brava. Mas falha miserávelmente. Sana é dengosa de mais para isso.

— O que aconteceu ?

—  O que aconteceu ?  Que tal um "Oi, Sana, sua vaca. Eu já tive alta do hospital!" ?


— Olha, em minha defesa, você tinha pedido para a minha mãe te avisar e não eu. — Falo só para irritá-la e deixo um risinho escapar.

— Eu vou te esganar quando eu chegar aí. — Ela fala e desliga.

Eu continuo rindo e vejo o celular começar a apitar avisando que estava quase completamente descarregado. Olho ao redor, mas não vejo o carregador em lugar algum.

— Dahyun! — Meu pai me chama.

Eu desço as escadas e vou para a cozinha. Antes mesmo de entrar dentro dela eu já podia sentir o cheiro maravilhoso que tomava conta do lugar e fazia a minha barriga roncar.

— Contemple a minha mais nova receita!  Bolinho de chuva trufado! — Ele diz, enquanto com todo entusiasmo do mundo, tirava os bolinhos do óleo quente.


Ele os coloca em uma tigela de vidro revestida com papel toalha e me dá um dos bolinhos que já estava esfriando.

— Tome cuidado, querida, ainda está um pouquinho quente.

Eu sorrio e provo o bolinho que realmente estava maravilhoso.

— Meu Deus, pai, isso está incrível!

— Obrigado, é o mínimo que eu podia fazer para agradar a minha princesa. — Ele diz enquanto suas bochechas ficam vermelhas. — Ah! Prove isso! — Ele pega mais bolinhos colocando em um pote e me dá uma xícara de chocolate quente. — Eu ia levar pra você, mas já que já eu já te chamei até aqui...

Eu agradeci e caminhei até a sala, me sentando no sofá enquanto comia os bolinhos. Aquela sensação era tão estranha. Eu tentava estabelecer uma distância segura entre mim e ele porque eu guardava muito rancor e ressentimento do meu pai verdadeiro. Mas essa versão dele...ele não lembra nem de longe o homem desprezível que o meu pai se tornou.

Eu quero sentir raiva dele, quero me afastar, mas eu não consigo, porque no final das contas eu sei que vou estar sendo uma completa idiota. Mas ao mesmo tempo, aqueles sentimentos que eu sentia quando era criança, aquele amor que eu sentia por ele e que com o tempo eu achei que tivesse morrido, ele estava ali, remoendo no meu peito, como se ele tivesse encontrado um motivo para existir novamente.

Eles não são a mesma pessoa, Dahyun...deixe de ser idiota.

Eu ouço a campainha de casa tocar e me levanto do sofá colocando a xícara com chocolate quente e os bolinhos em cima da mesa da sala e corro para atender a porta. Quando abro, uma linda japonesa me olha com uma expressão de raiva assim que me vê.

— Hora hora, se não é a melhor amiga mais ordinária do mundo!

Ela diz e entra sem pedir autorização ou licença.

— E aí, senhor Kim.

— Ah, oi, Sana. — Meu pai cumprimenta ela da cozinha, ainda concentrado em suas receitas.

Sana vê os bolinhos em cima da mesa da sala e caminha em direção a eles.


— O que é isso ? — Ela pega os bolinhos e começa a comer, também dando um gole no meu chocolate quente.

— Sana! Como você se atreve ? — Eu tento tirar a tigela das mãos dela, mas ela fica se esquivando e corre para longe, continuando a comer.

— Eu estou chateada. Preciso comer quando a minha melhor amiga vacilona me magoa.— Ela diz enquanto eu corro atrás dela pela sala. — Hmmmm isso está delicioso, senhor Kim!

Ouço meu pai rir de dentro da cozinha.

— Obrigado.


— Pai! A Sana está comendo os meus bolinhos!

— Tem mais aqui, querida.

A japonesa começa a correr escada a cima, com a tigela e a xícara na mão enquanto eu corro atrás dela. Ela entra dentro do meu quarto e tenta fechar a porta, mas eu consigo chegar antes dela conseguir fechar. Sana da um grito e larga a xícara em cima da cômoda e eu me atiro em cima dela levando nós duas ao chão. A japonesa deixa uma gargalhada gostosa escapar.

— Você me paga! — Eu digo tirando a tigela da mão dela e jogando sobre a cama.

Quando eu tentei imobilizá-la, segurando seus braços, Sana foi mais rápida que eu e conseguiu ficar por cima de mim, segurando meus braços acima da cabeça.

Nós duas estávamos rindo, até eu olhar no fundo de seus olhos e sentir o meu coração disparar dentro do peito. Eu estava sentindo seu corpo em cima do meu e a maneira que suas mãos delicadas seguravam meus braços firmemente. Meus olhos começaram a explorar cada detalhe de seu rosto. Até eu começar a olhar mais para baixo.

— Eu trouxe uma coisa pra você. — Ela diz, engolindo em seco, me soltando repentinamente.


Sana pega um pequeno caderno de desenhos de dentro da bolsa cor caramelo que ela estava usando. Ela se senta sobre a cama e eu me sento ao seu lado, olhando para o caderno curiosa.

— Acho que isso vai te ajudar a lembrar de algumas coisas. — Ela abre o caderno e eu vejo um lindo desenho do globo terrestre com uma linha pontilhada na cor vermelha, que ia do Japão até a Coreia. — Num belo dia, a pequena Sana saiu de sua terra natal, lá no Japão , na cidade de Osaka, para vir para Seul, onde ela encontrou sua melhor amiga, a pequena Dahyun. — Ela vira a página e no desenho seguinte, tinha um desenho de nós duas crianças, sorrindo e com os bracinhos para cima, felizes em encontrar uma a outra. — A pequena Sana teve muita dificuldade em fazer amigas — Ela continua — e por não falar bem o idioma, a pequena Sana sofria muito bullying, o que deixava ela muito triste, querendo voltar para sua terra natal, mas a pequena Dahyun sempre estava lá, para fazê-la sorrir e até mesmo defendê-la das brincadeiras maldosas das crianças idiotas que lhe faziam mal. — Ela mostra um desenho onde eu estava fazendo carinho nela enquanto ela chorava. Na folha seguinte, eu estava com os punhos cerrados e botando fogo pelos olhos enquanto olhava com puro ódio para um grupo de crianças que estava mexendo com Sana. — A pequena Dahyun era muito brava e briguenta e sempre botava pra correr todos que mexiam com a Saninha.

Eu deixo um riso escapar. Aquilo era tão doce. Eu estava sentindo meu coração quentinho dentro do peito.

— Com o passar do tempo, a pequena Dahyun se tornou o único motivo pelo qual Sana decidiu ficar...e desde então elas se tornaram amigas inseparáveis. — No desenho final, eu e Sana estamos sorrindo enquanto cruzamos os dedinhos, num gesto de fidelidade.

Eu instintivamente sorrio e abraço ela bem forte. Não sabia o porque, mas eu estava emocionada.

— Isso foi tão lindo. — Falo com a voz embargada.

— Eu tenho fé que você vai se lembrar de tudo isso.

Quando nós rompemos aquele caloroso abraço e eu me recomponho e a japonesa pergunta:


— Como você está se sentindo ? Sente dor em algum lugar ?

Eu faço que não com a cabeça

— Então...eu queria saber se você topa ir numa consulta comigo...eu já tinha marcado ela antes de tudo aquilo acontecer. Eu iria reagendar, mas  como vi que você teve alta...

— Tudo bem, vamos. — Eu respondo antes dela terminar.

Eu não queria ir, mas achei que o quanto antes isso terminasse, melhor.

Eu perguntei para Sana se todas as coisas dentro do closet eram minhas, porque tinha algumas roupas muito lindas ali que eu queria experimentar. Sana riu e disse que tudo ali dentro era meu, porque o closet da minha mãe era dentro do quarto dela, em uma das portas.


Sana foi comigo até lá e me ajudou a escolher uma roupa. Ela me fez calçar um salto alto preto, uma saia de mesma cor que se quer chegava aos meus joelhos e uma camiseta branca sem alça. Eu me olhei no espelho e mesmo não me sentindo confortável por não estar acostumada a andar de salto alto eu me senti muito bonita e elegante.

— Sana! Eu vou cair. — Falei ao tentar caminhar com o salto.

Ela riu e tentou me ensinar, mas ao ver que eu era um completo desastre, a japonesa achou melhor nós sermos mais cautelosas.

— É melhor você colocar uma sandália. Não vamos arriscar outro acidente. Se acontecer mais alguma coisa com você na minha companhia, sua mãe vai me matar.

Sana se abaixa e tira o salto alto dos meus pés e me ajuda a calçar a sandália.

— Está melhor assim?  — Ela pergunta olhando para mim,  enquanto prendia a sandália no meu pé.

Eu sinto um arrepio percorrer todo meu corpo e não precisei olhar no espelho para saber que eu estava vermelha.

Depois, a japonesa me ensinou onde eu guardava meu estoque de perfumes e me mostrou quais eram os meus favoritos. Era ali mesmo no closet, atrás de uma porta de correr de cor marrom. Que ficava atrás das minhas bolsas.

— Você é muito protecionista com os seus perfumes. Por isso escondeu eles assim. — Ela explica. — Você só deixa eu afanar eles. — Ela diz pegando um dos frascos e começando a passar o perfume fartamente enquanto sorria.

O aroma adocicado e suave se propagou por todo o lugar e eu olhei para ela franzino a testa.

— Eu deixo, é ?

As bochechas da japonesa mudam de cor e ela desvia o olhar, ficando sem graça. Eu tomo o perfume da mão dela e também começo a passar, coloco ele no lugar e fecho a porta.

— Vamos ?

===


Sana teve que se explicar para o meu pai e jurar para ele que eu iria ficar bem e que nós não iríamos longe, mas ela inventou uma desculpa, disse que eu e ela iríamos ao shopping escolher o presente de aniversário de uma amiga muito especial e eu tive que fazer o meu melhor biquinho pro mais velho deixar eu ir.

— Quero ela de volta o mais rápido possível. — Ele diz, olhando sério para Sana.


— Sim senhor. — A japonesa bate continência.

Quando ele finalmente nos libera, nós entramos no Jeep prateado e partimos para a tal consulta.

Cerca de uns vinte minutos depois, nós paramos em frente a uma clínica com as paredes pintadas de azul marinho. Assim que entramos no lugar, eu vi a recepção cheia de gente e atendentes no balcão de atendimento.

Sana e eu passamos direto e sem falar com ninguém, fomos ao consultório de número 5. A japonesa bate na porta e uma voz do outro lado diz:

— Pode entrar.

A japonesa abre a porta e eu me deparo com uma mulher lindíssima, que assim que nos vê, força um sorriso.

— Por favor, sentem-se. — Ela diz.

Eu e Sana  nos acomodamos e a japonesa diz:

— Kim, essa é minha amiga, Tiffany Hwang. Pode confiar nela. Ela é uma psiquiatra incrível.

Eu tento parecer confortável, mas...quando olho para aquela mulher...eu sinto algo ruim. Não consigo confiar nela. Tiffany tinha um ar de indiferença e soberba.


— E então, como posso ajudá-la, senhorira...Kim Dahyun, certo ? — Ela pergunta e novamente força um meio sorriso.

Eu não sabia o que falar. O que eu deveria dizer ? Que Sana achou melhor me levar para o psiquiatra depois que eu disse ter vindo de outro mundo ?

Alguns segundos se passaram desde a sua pergunta. Tempo o suficiente para criar um clima desconfortável. Eu olho para Sana atemorizada e a japonesa fala por mim:

— Tiffany, a Dahyun está com amplos lapsos de memória. Mas os exames neurológicos não acusaram nada. Não encontramos nada em seu cérebro que pudesse justificar isso. Mas ela acredita saber o motivo de tudo isso...

A maneira como Sana diz isso...me faz se sentir ainda mais desconfortável. Elas começaram a me olhar e trocar olhares entre sí de maneira que eu me sinto acuada.

—  O que você quer que eu diga? — Eu pergunto para Sana, um pouco irritada.

— Quero que diga para a doutora Tiffany o que você tinha dito para mim, Kim.

Mas que inferno... por que eu estava tendo que passar por isso?

— Certo, Dahyun, vamos tentar ir devagar, está bem ? — Tiffany tenta adotar um tom apaziguador. — Você não se lembra de nada da sua vida, não é ?

Eu faço que não com a cabeça.

— E você sabe quando isso começou ?

— Eu acordei no meu quarto e não me lembrava de nada. — Respondi de forma seca. Eu não queria contar nada para ela. Sabia que aquilo não iria me levar a lugar nenhum. Aquela mulher não iria me ajudar.

— Certo...— Ela diz com um tom de indiferença, sem sequer manter contato visual. — Sana compartilhou comigo que...você diz acreditar vir de outro universo, é isso ?

Meus olhos se arregalam  e eu olho para Sana indignada. Quando Sana percebe o quanto aquilo tinha me incomodado, ela olha para o lado como se fugisse de mim.

A maneira como Tiffany disse aquilo só fez tudo parecer ainda pior. Sua fala tinha um tom de zombaria.

— É...— Falo séria. Já não sou mais capaz de disfarçar o quanto isso estava me irritando.

— E você se lembra de ter passado por algum evento traumático ? Algo que se você pudesse, gostaria muito de esquecer ?


— Não. Nada assim me ocorreu.

— E... como é o seu ambiente famíliar ? Você tem uma relação saudável com as pessoas com quem você convive ?


Conforme eu fui negando ter tido qualquer tipo de experiência traumática no trabalho ou na infância ou dentro de casa, percebi Tiffany ir ficando cada vez mais estressada. Dava pra ver o quanto ela queria se livrar de mim.

—  E por que você acha que veio de outro universo? — O tom dela mudou. Ela largou a abordagem amigável. Essa foi uma pergunta direta, me pondo contra a parede.

— Você não acha que isso seja possível ? — Eu pergunto, só para ver qual iria ser sua reação.

Tiffany para de olhar para a tela de seu computador e me olha séria. Então, ela começa a preencher algo que eu percebi ser uma receita médica.

— Tome isso, vai ajudar. — Ela diz se esforçando o máximo que pode para sorrir.

Eu peguei a receita, me levantei e sai do consultório sem dizer nada. Sana falou algo para Tiffany que eu não consegui entender o que era e depois veio atrás de mim.

—  Dahyun! Espere!

Eu saio da clínica e espero ela ao lado do carro.

— Você deveria ter se aberto mais, Kim. — Ela diz ao me alcançar, como se eu tivesse feito algo de errado.

Eu nada respondo. Quando ela abre as portas do carro, eu entro e me mantenho calada.

Sana começa a dirigir, me olhando de relance. Aquele silêncio desconfortável se mantém até eu finalmente dizer:

— Por que você fez isso ?

— Isso o quê?

— Você contou tudo que eu disse para ela, sem ao menos falar comigo primeiro.

— Está tudo bem, Kim. Ela é uma amiga minha e é médica....

— E o que você esperava que iria acontecer ? —  Eu a interrompo.

— Kim...eu não estou te entendendo.

— Ela é uma psiquiatra, certo ? O que você esperava que iria acontecer ? — Sana não responde, ela fica com um semblante triste. — Eu não fui até lá para ser ajudada. Fui até lá para vocês diagnosticarem qual doença mental eu tenho. Isso só mostra que você não acredita em mim. Como eu posso confiar em alguém que não acredita em mim ? O que eu devo fazer agora? Me entupir com esses remédios tarja preta que ela me receitou ? — Eu me descontrolei e comecei a falar furiosa. Aquela maldita ansiedade tomando conta de mim, fazendo minhas mãos começarem a tremer.

Sana respira fundo. Ela nada responde. Estava apenas visivelmente magoada. Mas o que eu estava esperando ? Era um beco sem saída de qualquer forma. Não importa o que eu diga ou para quem eu diga, ninguém nunca vai me ouvir.

Quando Sana parou na frente de casa, ela tentou conversar comigo antes de destravar as portas.

— Dahyun...eu...eu não quis te ofender ou te magoar. Eu só fiz o que eu achei que seria melhor pra você, como sua amiga.

— Eu sei. Você não fez por mal. Mas vamos deixar dar isso pra lá , está bem ? Se você não consegue acreditar em mim, apenas me deixe em paz. — Ela olha pra mime sem dizer nada, destrava as portas do carro. Eu desço e bato  a porta com força.


Caminhei até entrar em casa, sem olhar para trás. Quando eu entrei, vi meu pai cochilando no sofá. Me lembrei do quanto ele estava exausto por ter ficado a noite inteira cuidando de mim. Pensei em avisar pra ele que eu tinha chegado, mas ele devia estar tão cansado.

Achando melhor deixá-lo continuar a dormir, eu subi as escadas e entrei no meu quarto. Eu me sentei sobre a cama e tirei aquelas sandálias, jogando elas longe. Procurei alguma roupa confortável para vestir e após se trocar, eu me joguei sobre a cama. Foi nesse momento que toda aquela sensação horrível se apoderou de mim. A ansiedade  veio forte, como uma tempestade que chega sem avisar. Começou com uma dificuldade para respirar e foi se acentuando, não demorou quase nada para os tremores nas mãos aparecerem e por último, uma crise de choro.

Mas não era só ansiedade. Eu estava me sentindo culpada. Eu não queria ter brigado com Sana. Não queria que as coisas acabassem como acabaram. Que idiota que eu sou. Como posso querer que ela acredite em mim ? Mas ao mesmo tempo, eu estava com tanta raiva dela por ela ter contado para outra pessoa o que eu tinha dito para ela assim tão fácil. Sana não é a  melhor amiga da minha outra eu ? Não existe algum tipo de código de honra das melhores amigas onde segredos trocados uma com a outra não podem ser revelados ?

Que falta me faz o meu Diazepam. Eu estava tão desesperada para aquilo parar que eu dobrei a ponta da coberta e enfiei na boca e depois comecei a gritar, sufocada pela coberta, até eu não ter mais forças, até colocar tudo para fora e eu só parei quando não tinha mais forças; nem para  gritar , nem chorar e nem sofrer por aquilo. E quando eu me deitei na cama, estava tão exausta que acabei dormindo.

===

"O senhor não pode fazer isso, não pode.

A minha menina. A minha garotinha...

Por favor, não tire ela de mim.

Ela é tudo que eu tenho ...

A minha menina.

Você não pode tirar ela de mim. Não pode. "

Era uma voz de choro, acompanhada novamente pelo som do aparelho que monitora os sinais vitais. Eu estava novamente paralisada e sabia de quem era aquela voz. Era da minha mãe. Tentei me mexer, me levantar, mas nada acontecia. Eu fiquei tentando e tentando, estava ficando desesperada e quando parei de tentar, senti algo como uma corrente elétrica percorrer todo meu corpo. Aquilo não doia, mas  era uma sensação forte, como se todo meu corpo estivesse vibrando, então, eu comecei a flutuar.

Quando isso aconteceu, eu consegui me mexer e ainda flutuando, eu pode ver a minha mãe, sentada  do lado do meu corpo, que estava sobre a cama do hospital. Eu tentei ir para baixo e acabei caindo no chão. Desesperada e sem entender nada do que estava acontecendo, eu me levantei e fui até ela.

— Mamãe! Ei! Mamãe!  — Eu gritei. Mas ela não me ouviu.

Quando eu tentei tocá-la, minhas mãos atravessaram seu corpo, como fumaça. Eu olhei para o meu corpo, deitado na cama de hospital. As mesmas ataduras na cabeça da última vez, os mesmos tubos ajudando ele a respirar.

Minha mãe estava segurando um rosário. Ela estava orando. Na mesa de cabeceira, ao lado da cama, havia um lírio branco que só poderia ser ela quem tinha colocado ali.

Eu me ajoelhei ao lado dela e fiquei olhando enquanto ela rezava um pai nosso e uma ave Maria para cada bolinha do Rosário.

Foi impossivel não chorar ao vê-la daquela maneira. O choro dela lavava o rosto enquanto ela balbuceava as palavras e as lágrimas grossas caiam no chão.

===

— Dahyun ? — Eu acordo com meu pai me balançando. — Querida, está na hora de almoçar. — Ele diz.

Estou atordoada. Mal tinha entendido o que ele havia dito.

— Você teve algum pesadelo ou algo assim ? Está tão assustada.

— N-Não, pai. Eu estou bem.

—  A sua mãe já está voltando para casa. Ela disse que  vai voltar mais cedo porque não está se sentindo muito bem.

— O que ela tem ? — Eu pergunto assustada.

— Eu não sei. Ela não deu muitos detalhes. Mas ela não vai demorar para chegar. Eu perguntei se ela queria que eu fosse buscá-la, mas ela me disse que não tinha necessidade.

Eu olho para o vazio e fico pensando em tudo que aconteceu. Tento por as ideias no lugar, mas não consigo chegar em lugar nenhum

— Vem, filha. Vamos esperá-la para almoçar.

Meu pai tinha preparado uma mesa farta. Tinha frango assado, uma salada bem colorida, suco de manga, entre outras coisas. Mas eu não consegui ligar para nada daquilo.  Fiquei sentada, esperando mamãe chegar.

Quando ela finalmente entrou, eu corri para a porta.

— Mamãe! — Eu a abracei bem forte quando ela colocou o primeiro pé dentro de casa. — Você está bem ? O que foi que aconteceu ?

— Oh, meu amor. Eu estou bem. Foi só um mal estar. Eu estava numa reunião de negócios e comecei a me sentir mal. Acho que foi a pressão.

— Sente-se aqui, querida. Deixe-me ver isso. — Meu pai leva minha mãe para se sentar no sofá.

Ele sobe as escadas e depois volta com um kit médico. Ele coloca nela um medidor de pressão e de glicose. Mede a pressão dela, ouve os batimentos cardíacos, pede para ela respirar bem fundo. Eu observo tudo muito nervosa.

Não podia ser coincidência, podia ? Eu não estava aguentando mais, eu precisava do meu diazepam ou iria enlouquecer.

— Sua pressão parece normal, querida. E a sua glicose também. Está sentindo mais alguma coisa ?

— Não, meu amor. Eu disse que foi só um susto. Deve ser o calor. Eu já estou bem.

Mamãe se levanta e tenta agir como se nada tivesse acontecido, nos chamando para ir para a mesa. Eu fico olhando para ela, pensando no quanto as duas são perfeitamente idênticas. Ela e a minha mãe verdadeira.

Tirando o fato de que ela nessa realidade, tem um corpo muito mais atlético, seus longos cabelos loiros são muito bem cuidados e ela tem uma aparência mais jovem, até por conta de ter muito dinheiro para ir em salões de beleza e recorrer a procedimentos estéticos.

Eu tento remover da cabeça a imagem dela desesperada, rezando com o rosário nas mãos. Os olhos inchados de tanto chorar, as mãos trêmulas e as coisas que ela dizia.

Enquanto almoçamos, eu tento não chamar a atenção, para que meu pai e eu possamos dar atenção somente para ela. Então, quando ele me perguntou como foi a minha ida com Sana até o "shopping" eu forcei um sorriso e disse que correu tudo bem.

Depois do almoço, mamãe foi tomar um banho e se deitou um pouco para descansar. Eu perguntei para o meu pai onde estava o carregador do meu celular e o computador. Ele me ajudou a encontrá-los e eu fiquei a tarde toda fazendo pesquisas na internet. Fiquei feliz pelo fato do notebook não ter senha ou coisa do tipo, isso facilitou muito a minha vida.

Fiquei surpresa quando descobri que o site de buscas mais famoso aqui não era o Google, ele sequer existia, assim como o Youtube. Era um tal de search net. Eu abri a guia anônima e comecei a pesquisar por "Realidades paralelas" fiquei um bom tempo pesquisando por isso, mas só perdi meu tempo. Era tudo muito fantasioso. Pouco objetivo ou conclusivo. Eu vi cada idiotice. Sei que deveria encarar aquelas informações com a mente aberta, já que estava passando por isso, mas não tinha como ouvir aquelas baboseiras sem considerá-las completamente absurdas.

A crença em realidades paralelas  se ramificava em várias teorias, a que mais me chamou a atenção foi a da física quântica que falava da possibilidade dos multiversos, tentando encontrar uma explicação científica para reforçar essa possibilidade. Só que eu já estava meio que de saco cheio dessa história de tentar encontrar explicações científicas para todas as coisas.

Cansada de ficar pesquisando aquilo, eu decidi pesquisar por "paralisia do sono" apareceram resultados bem interessantes. Tinha muitos vídeos de médicos falando a respeito do tema, mas também, muitos relatos de pessoas falando suas experiências a respeito do assunto. Isso foi o que mais me chamou a atenção, porque encontrei o comentário de um usuário em um site chamado vid.web, que acredito ser o equivalente do YouTube, falando que ao ter uma paralisia do sono, ele tentou se levantar e ao fazer isso, ele viu seu corpo deitado na cama. Um usuário respondeu "isso se chama projeção astral" e a tal da projeção astral foi o próximo tema da minha pesquisa.

Fiquei impressionada com a quantidade de coisas que encontrei a respeito do assunto. A projeção astral, segundo o que eu pesquisei, é a capacidade da alma de sair de dentro do corpo físico durante o sono e acessar o mundo espiritual. Muita gente relatava sentir as mesmas coisas que eu senti durante as minhas paralisias, como a sensação de um choque elétrico percorrer todo o corpo, essa sensação os "projetores astrais" chamam de "Estado vibracional" ou "EV" e eu também encontrei o vídeo de um homem que falava que uma experiência de quase morte também poderia desencadear uma projeção astral. Muitas pessoas que tiveram experiências projetivas, também relataram se sentir flutuando enquanto "saiam" do corpo.

Mas a tal projeção astral não respondia todas as minhas perguntas. Ela explicava eu ver o meu corpo deitado sobre a cama e o fato deu ter flutuado acima do meu corpo após sentir o tal do estado vibracional. Mas ainda tinha muita coisa para as quais eu não encontrei respostas e a principal delas, obviamente, era eu estar aqui, em uma realidade paralela.

Já estava tarde, meus pais me chamaram para o jantar. Eu não  me dei conta do quão rápido o tempo tinha passado. Depois do jantar, enquanto eu ajudava meu pai a lavar louça, ouvimos a campainha tocar.

— Quem será uma hora dessas ? — Ele perguntou, enquanto enxaguava os pratos.

— Eu atendo.

Parei de secar a louça e caminhei até a porta. Quando abri, me deparei com Sana.

— Será que nós podemos conversar?

Eu nada respondi, apenas dei espaço para ela entrar.

Ao vê-la, meu pai imaginou que deveria se tratar de algo importante e disse que dava conta de terminar com a louça sozinho. Eu agradeci e Sana  e eu subimos para o quarto.

— Me desculpe por vir uma hora dessas, mas eu não queria que as coisas ficassem do jeito que estão. — Ela diz.


— Tudo bem...eu também exagerei. Não deveria ter dito aquelas coisas...

— Não! — Sana se aproxima de mim e segura minhas mãos. — Eu preciso te dizer que...você tem toda a razão. Eu não deveria ter feito o que eu fiz. — A voz da japonesa está embargada. — O que eu quero dizer é que...de agora em diante, eu vou acreditar em você. Eu estou aqui para te ouvir. Ouvir tudo que você precisa me dizer. E acreditar em você como uma boa amiga deve fazer. Será que você pode me dar uma segunda chance, Kim ?

A garota esquilo (SaiDa)Onde histórias criam vida. Descubra agora