-Você está transpirando.
Estou muito mais que transpirando, mas não digo isso a Ana, porque não quero preocupá-la.
– Sim – respondo, e, por um tempo, funciona, pois Ana apenas observa a estrada.
Estamos no carro há pouco mais que uma hora, o que parece uma boa forma de descrever matematicamente o tempo real da coisa quando ela se parece uma outra totalmente diferente. Na verdade, parece que estamos no carro desde sempre. Estamos indo para a Grande Festa natalina da família Oliveira, o que é apenas um termo para a Grande Festa Natalina da Mamãe.
Quando era criança, eu sempre acompanhava minha mãe nas festas, pois nunca tínhamos ceia em casa. Meu pai não saía muito. Não me lembro de momentos que passei com ele fora de casa, pois sempre éramos minha mãe, meus irmãos e eu. Depois de um tempo, a situação da família melhorou e mamãe finalmente se agraciou com a primeira ceia. Desde então, a família às vezes se reunia num sítio dos meus pais, não muito longe da capital de São Paulo.
Nunca fui uma pessoa natalina. Não estou muito a fim de comemorar o Natal, mas parece errado faltar. Ainda mais compreendendo que, se eu faltasse à festa, mamãe passaria o ano inteiro falando sobre.
Ana percebe algo acontecendo em minha mente, eu acho, pois ela se vira para mim.
– Relaxe. – E quando não pareço relaxar, acrescenta: – Vai dar tudo certo. – Ela sorri, e seu belo sorriso me faz escutá-la. – Não fique nervoso. O que pode acontecer de errado?
Então percebo que ela não se lembra do que havia acontecido no ano retrasado, quando papai e mamãe nos convidaram para passar o Natal na casa da família em São Paulo. Rebecca desapareceu como fumaça, deixando todo mundo preocupado. Ainda mais mamãe, que sabia que ela tinha bebido demais. O que poderia resultar em várias visões imaginárias de Rebecca caindo bêbada em um poço ou sendo atropelada por um trem que ia direto para Osasco.
Então começamos todos a procurá-la, e, em algum momento da noite, notamos que nossa prima, Dani, também havia desaparecido. Logo, tudo desabou quando mamãe as pegou em meu quarto. Foi a pior festa de Natal que nós tivemos.
Encaro o meu reflexo no espelho retrovisor interior e noto que estou com leves olheiras, mas não me preocupo com isso. Todos pensarão que é apenas reflexo da exaustão do trabalho, que chega a ser algo quase bom. Estou cansado e sou jovem demais para estar cansado. Meus dedos tremem e eu entendo que é um pouco de ansiedade, e ter parado de fumar também não melhora muito os sintomas corpóreos. Ana tenta não notar que estou batendo os dedos no volante.
Devemos ter tomado pouco mais que uma hora e meia no breve trânsito da rodovia ao sítio dos meus pais. Não sei se é sentido de mãe, um poder sobrenatural que algumas mulheres têm, mas ela está à porta nos esperando de braços abertos. Está linda em seu vestido vermelho, e digo isso para ela. Mamãe sorri e me abraça por alguns segundos.
– Vamos, vamos, entrem, entrem – diz quando se solta do abraço. – O céu fechou, não é mesmo? Parece que vai cair um pé d'água.
Estava quente mais cedo em São Paulo; à noite, há um céu pesado de largas e escuras nuvens que chamam a chuva. Mamãe me observa por um tempo, seu olhar meio analítico.
– Antônio, você está com olheiras. Ana, querida, você está maravilhosa, como sempre.
Ana sorri em agradecimento. Pedrinho está segurando seu dinossauro de pelúcia. Mamãe o beija nas bochechas e põe um gorro natalino em sua cabeça.
Atrás de mamãe, vejo a cor do interior da casa, um amarelo um tanto dourado, e acho engraçado como é diferente do exterior. Exceto pela exagerada decoração natalina, o mundo é todo verde e marrom, mas do lado de dentro se consegue sentir a vivacidade de todas as coisas. Por um momento, me sinto melhor. Eu me pego pensando então que esse Natal não seria como o outro, não haveria desastres, ninguém seria pego sem roupa em meu antigo quarto e ninguém cairia num poço, e sorrio com isso.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Até a última noite
RomanceA vida de Antônio muda de repente quando ele perde o emprego na véspera de Natal. Em meio ao caos de sua família e todos os dramas que a cercam, Antônio se vê perdido na própria insegurança em relação ao presente e ao futuro. Mas o seu mundo se tran...