Escrito por Pedro Oliveira
DENTRE TODOS OS PECADOS apresentados pela linguagem religiosa através dos séculos — que culminaram na destrutiva caçada por um assento glorificado no imaginário cristão —, a Luxúria é o mais permissivo e satisfatório deles, pois atua diretamente nas camadas mais profundas do nosso prazer. Desde os primórdios da humanidade, a criatura homem satisfaz suas lascivas necessidades carnais como um animal faminto em busca de uma saciedade instantânea; mas por ser de curta duração, sempre acaba voltando. É um ciclo vicioso, e como todo vício, te deixa completamente dependente.
Vivo este sacramento desde os quatorze anos, quando meus pais, pastores da congregação de Lipchitz, foram assassinados pelo chefe da mafia de San Francisco, na época conhecido como Scorpion. As denúncias deveriam ter sido anônimas, mas alguém havia aberto o bico. O caso ganhou mínima repercussão, alguns manifestos foram organizados pela comunidade e abafado dias depois devido à forte influência da intimidação da máfia, apesar do requinte de crueldade no qual os corpos queimados foram encontrados: amordaçados, nus, com mãos e pés amarrados para parecerem embalagens de presunto à vácuo.
Scorpion possuía uma rede de cafetinagem espalhada por todo o distrito. Órfã, sem amparo do estado e ameaçada, fui obrigada a integrar um dos prostíbulos liderados por Madame Bouvier, sua até então mão-direita.
A história da cafetina francesa antes da exploração de menores não era interessante, mas seu final merece honrosas menções. Ela foi morta à tiros numa troca intensa com a polícia durante uma batida na sua casa noturna, Silver Tongue, que posteriormente foi fechada pela prefeitura e hoje está entregue às baratas e de volta nas mãos da máfia. O prostíbulo era afiliado ao La Sonata de Venus, um hotel quatro estrelas na área nobre de San Francisco, onde trabalho há quase uma década. A propriedade já mudou de dono inúmeras vezes, já que nenhum dos engravatados conseguiu lidar com as condições impostas pelos negócios brutais aqui enraizados.
A chegada de Ambrose Leondorf, coincidentemente na semana da morte de Scorpion, mudou as perspectivas para o La Sonata de Venus, prejudicado pelo acúmulo de dívidas. Como se fosse seu bilhete premiado, o bon vivant britânico assumiu a propriedade no momento da maior e mais catártica paz que San Francisco já teve. Ao menos, até o sucessor de Scorpion também assumir seu cargo e manter a máfia funcionando. A rede de cafetinagem segue de pé, sendo o principal canal de atrocidades do distrito. Enquanto Leondorf, o cafajeste no cavalo branco, também se ateve às mazelas da cidade, dando suporte para a cafetinagem na parte invisível de seu hotel.
É um ciclo vicioso, e como todo vício, te deixa completamente dependente.
II
Todos, se não boa parte dos homens com quem me relaciono são casados. Suas famílias frequentam a igreja, os restaurantes e o parque localizados no entorno do La Sonata. Durante o dia, vejo as crianças correndo atrás do carrinho de pipoca e disputando os brinquedos de metal instalados entre as árvores; à tarde é possível acompanhar como as cantinas fumegantes se abarrotam de funcionários cooperativos, principalmente da Walden & Gillies Foods, uma indústria de alimentos da região. Entretanto, a melhor visão para se ter da cidade é certamente quando a lua perde a castidade no céu, despindo-se das nuvens e cobrindo-se de estrelas.
É neste cenário que eles saem para destruir seus laços matrimoniais. Feito vagalumes sobrevoando a lâmpada, os infieis circulam com seus chapéus escuros, sobretudos duplamente revestidos e capas de chuva que só servem para esconder os emblemas de suas empresas. Essas represálias iam doer... Ouch!
Soa fantasioso o modo como rastejam na porta do La Sonata, farejando a perdição e acenando discretamente para os fundos da sarjeta. Não passam de pobres coitados que se esgueiram na mentira suplicando por prazer. Há quem possa pagar os serviços, há quem se aproveita da intimidade para extorquir, punir e até agir com violência. Felizmente, com a parceria existente entre Leondorf e a máfia, quem decide passar a perna no serviço oferecido, também sofre as consequências. O juízo das ruas é cego e carrasco.
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The Wicked Tales
HorrorContos de horror para ler antes de morrer. Escritos por: Lucas Pinheiro, João R. C. Melo, Marcio Vinicius, P. W. Oliveira, Brenda Zaninetti, Vinne Camargo, Leanderson Moreira e Jaime Pinheiro.