"Eles irão te perseguir logo. Espero que esteja pronta."
John remexia em suas seringas, procurando dentro da gaveta branca apenas um entre as centenas de frascos ali guardados. Continham diferenciados líquidos, tanto na cor quanto na textura, até mesmo no tamanho das agulhas, apesar da maioria ser escolhida na hora da aplicação. Pareciam frágeis, e sentia aflição toda vez que o homem se descuidava naquele mar de tortura, fazendo o tilintar dos vidros se tocando ecoarem no silêncio.
Kira estava sentada na fileira de cadeiras, o braço preparado e o irmão mais velho, Andrew, agarrando-a firmemente. A garotinha lutava de verdade para sair, com o sangue fervendo. Não exatamente pelo medo da injeção – medo é claro que ela tinha, mas já estava acostumada. Era, em sua maior parte, por teimosia. Não queria dar o gosto ao pai de, novamente, injetar aquelas malditas vacinas em seu braço, de colocar um líquido gélido e ardente para caminhar por entre suas veias. Pensando por aquele lado, era bem mais cruel, mas nunca teve escolha de tentar ver de qualquer outro jeito. É claro que de nada adiantaria tamanha relutância, e ela sabia. Andrew chegava a arranhar um pouco sua cintura, mas a morena nada disse. Apenas esperou.
Em época de vacinação, John sempre conseguia as doses da prefeitura por ajudar à produzi-las e, por ser biomédico, tinha permissão para manuseá-las sem quaisquer limitações. Sabia que havia algum tipo de troca de favores ali, mas aquilo era tudo. Aquela em suas mãos era a segunda dose da vacina de catapora, dissera. Talvez a única coisa que favorecesse Kira, mesmo que em parte: saber o que estava prestes a fazer parte de si e supostamente, impedir seu corpo de adoecer, e mesmo não podendo se aprofundar no assunto, aquilo era reconfortante.
"Mas, já parou para pensar em quantas pessoas se apoiam na ilusão, pois a realidade não tem capacidade de trazer algum conforto?"
— Finalmente! — murmurou Andrew ao ver o pai voltando com a seringa. O mesmo limpou o braço com álcool num algodão e sem delongas, injetou o líquido transparente. Kira estremeceu, encarando a agulha perfurar sua pele. Ela sempre preferira observar, no lugar de fechar os olhos. Encarava os mínimos detalhes, de forma minuciosa, a forma como a pele morena afundava enquanto aquele pequenino cabo de metal a penetrava, a forma como a sentia encontrando sua veia, tudo. Observava com os olhos e com o tato. É melhor conhecer a dor enquanto se tem a oportunidade, afinal. Algumas lágrimas escorreram ao mesmo tempo que um som fino que formava um nó em sua garganta decidia mostrar-se discretamente, contra sua vontade.
A ardência do líquido parecia mais intensa, e mal percebera que o toque do irmão passara, aos poucos, de firme para reconfortante.
Não demorou para que a agulha fosse retirada e um pequeno algodão fosse colocado e colado em cima da perfuração com um band-aid redondo, assim como Kira, que não perdera tempo e logo em seguida desvencilhou-se do aperto do irmão e se dirigiu ao quarto, sentindo-se derrotada.
*
Kira agarrou o tecido grosso do cobertor azul como se sua vida dependesse dele. Logo, percebeu que não havia retirado o curativo durante o banho, então, já sabendo que estaria cicatrizado, o retirou e jogou no piso bege do quarto. Estava cansada demais para levantar e decidiu que o tiraria de lá no dia seguinte. Seu pai, John Sünder, acabara de sair do pequeno quarto da menina, apagando a luz com indiferença ao pavor da escuridão pelo qual a filha sentia-se sendo consumida, alegando ser um medo passageiro, o que era, de fato.
"De que adianta saber que algo no futuro acaba, enquanto naquele momento, do qual você respira o ar e encara a vida que tem, ainda está lá, encarando-lhe, sempre à espreita, à espera de sua queda?"
Após um bom tempo tentando fechar os olhos sem ter de abri-los logo em seguida para conferir se não havia nenhum monstro ali, o sono venceu o medo e Kira Sünder caiu nos braços da escuridão, cedendo à fadiga que aparecera repentinamente.
Então, um som perturbador invadiu seus ouvidos, fazendo-a acordar num pulo. Sonolenta, demorou a perceber ser o telefone fixo da sala tocando. Não se preocupou em ver as horas e, ignorando o sono e o frio, saiu da cama. Correu, meio grogue, até o aparelho, passando por corredores e escadas, e o atendeu.
Silêncio.
E, um som tão repentino e alto que fez seu coração disparar, sua respiração falhar e seus sentidos embaçarem, saiu do alto falante. Eram berros. Berros que caíam numa agonia quase contagiosa. Berros que faziam suas crenças desaparecerem aos poucos, que faziam a fé parecer uma ilusão, que passavam toda a angústia, a dor e até mesmo os pecados que aquelas pessoas pagavam injustamente. Não sabia como, mas aqueles berros lhe mostravam detalhes, explicações e ao mesmo tempo tiravam sua sanidade para que não pudesse entendê-los.
Não tinha nenhuma noção do tempo, e tudo o que sabia era que os berros não pararam por longos segundos – será que eram mesmo segundos? – mas não importava. Logo, risadas cobriram – mas não totalmente – os berros. Mais especificamente, uma risada. Uma risada sincera e feliz, como a de qualquer ser humano em um momento alegre, pois para o dono daquela voz, aquele momento era feliz, era prazeroso, ela sabia, ela sentira. Uma risada que trabalhava fora de sincronia com os gritos ao fundo, mas que parecia ser compreendida pela dor. A risada da dor, a dor pela risada – dessincronizados, mas num trabalho ainda assim perfeito.
E mais silêncio, mas que dessa vez não foi seguido por nenhum ruído além dos bipes do telefone.
A ligação foi encerrada, junto com o pesadelo da garotinha.
"Pesadelos não se encerram. Não mais. Eu queria poder voltar a ter a sensação que tive naquele dia, ao acordar e perceber que fora um sonho. Me senti tão aliviada...
E no fim, descobri que teria sido melhor se tivesse sido real."
Kira acordou em silêncio. Normalmente, ela berrava ao ter um pesadelo e ia correndo ao quarto dos pais, mas não se sentiu apta para tal feito. Jovem, ela era. Sabia que havia vivido uma porcentagem inútil da vida que era permitida aos padrões da sociedade. Mas também sabia que não se atreveria à permitir um mísero grito sair de sua garganta por um bom tempo. Sabia que se isso acontecesse, não ouviria sua própria voz, mas sim aquelas vozes.
"Você não escolhe os gritos que sairão de sua garganta, garotinha tola. A vida os tirará à força. Uma pena, ter descoberto isso tão tarde..."
Lágrimas de desespero corriam pelas bochechas, tanto (e principalmente) pelo pesadelo quanto pela escuridão do cômodo, que em nada ajudava.
Então, tentou caminhar o mais calmamente possível – em vão, é claro – e como de costume, dirigiu-se ao quarto dos pais e sem nem pedir permissão, jogou-se entre o homem e a mulher, abraçou a mãe, fechou os olhos e tentou, novamente sem sucesso, adormecer, como sempre fez após todos os seus momentos angustiantes "pós-pesadelo".
Aquele seria o primeiro de uma sequência de muitos outros. Queria tanto poder voltar no tempo e avisar aquela garotinha para aproveitar enquanto eram apenas pesadelos...
Afinal, é muito melhor acordar de um pesadelo, que acordar para um.
"Onde há vida, há pesadelo. Não há para onde fugir, ou para onde se esconder.
Apenas corra, criança. Corra até que suas pernas cansem, e aproveite a visão deles lhe alcançando...
Porque uma hora, eles vão.
E você sabe disso."
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A Onda Branca
Science FictionKira Sünder tinha um trauma. Já imaginou como seria a sua vida, se você nunca mais pudesse dormir? Uma ligação, uma risada, muitos berros. Seus pesadelos te perseguem todas as noites, e você foge deles, corre até que não reste fôlego. Mas e quando...