Imagino frequentemente aquela noite em que quebramos o tempo. No nosso abraço, de dois jovens apaixonados, entre beijos e promessas, o tempo concordou com aquele amor e de livre e espontânea vontade parou. Não dá para saber quanto tempo passou, afinal o tempo estava quebrado, mas era uma sexta-feira, então tudo bem. Diria que durou exatamente uma eternidade, sua cabeça no meu ombro, sua mão pequena envolta na minha ganhou um apelido que usaríamos para sempre. E usamos, naquela eternidade engarrafada que foi só nossa quando o tempo quebrou.
No seu maravilhoso sorriso eu ainda busco o meu farol, que me guia para fora das tempestades que rugem dentro de mim. Seu cheiro ainda é meu guia, que me farola para longe do fedor ferroso do meu sangue pincelado nas paredes. Tudo em você era perfeito naquela noite, e ainda é, porque o tempo quebrou e embora eu esteja aqui, ainda estou lá, com o vazio que você deixou nos meus braços. Mas estou aqui. Mas estou lá.
Eu pedi pro tempo passar, ele riu meio sem jeito e disse que não dava. Perguntei por que você não estava mais lá e ele me disse que para você o tempo passou. Mas para mim não passava. Eu não sei o que foi que fiz pro tempo parar, e então não consigo desfazer, mas você desfez e para você o tempo voltou a andar. Mas eu ainda estou lá. Estou aqui, mas estou lá.
Embora não lembre de tudo que a gente disse, lembro das partes importantes. Desde o primeiro dia a gente riu muito, e choramos. Te beijei sabendo exatamente o que estava fazendo e você me abraçou como se nunca mais fosse largar. Mas largou. E eu fiquei lá, naquele apartamento de teto baixo, com o chão coberto de brinquedos cor de rosa. E a geladeira ainda geme, e o elevador ainda estala e a brisa ainda agita as cortinas. A tv desligada reflete minha imagem sombria, sentado num sofá que não existe mais, e eu estou lá procurando sua mão em vão. Estou aqui, mas estou lá.
Uma lembrança tão perfeita que me lembra o inferno, e o diabo debocha da minha boa memória e da minha esperança choca de que aquilo tudo não tenha sido em vão. Mas foi. Para você foi. Você soltou minha mão e o tempo voltou a passar. Mas para mim não passa. Dói o tempo todo. Eu abraço a sombra que restou de você, no seu formato, que encaixa no meu peito, emoldurada pelos meus braços roliços. Não é a mesma coisa. Nunca mais será. Me pego lá o tempo todo, mesmo quando estou aqui, ainda estou lá.
Tenebrosa sina a minha, de viver a vida em dois lugares ao mesmo tempo. O lugar que era belo, agora um túmulo lacrado comigo dentro. Enterrado vivo, mas completamente morto, eu lamento pelos cantos, sentindo o rastejar dos vermes, o farfalhar das mariposas e o silêncio ensurdecedor do esquecimento. De ter sido a luz dos seus dias, só para me tornar uma eterna noite nublada de sexta-feira. O sol lá nunca nasce, e mesmo quando aqui nasce, eu estou lá.
Eu nunca imaginei que o tempo fosse fazer tanta falta. Congelado no passado, ainda me assombram nossas últimas conversas e o peso de finalmente aceitar meus erros. Você me disse que eu iria encontrar outra pessoa, outra mão para segurar, outro sorriso para admirar, mas eu não queria, e você disse que talvez fosse melhor assim. E quando eu pergunto ao tempo se você volta, ele desconversa. E quando pergunto se posso seguir em frente, ele diz que não. Para você ele passou, mas mesmo estando aqui, eu estou lá.
Ainda que passem mil eternidades, engarrafadas ou não, a dor é tanta que mesmo em meio aos mortais, visto que já estou morto, o véu que me impede de gritar é tão fino que mais de uma vez precisei me afastar dos outros para não transparecer a minha insanidade, que floresce novos botões todos os dias. Isso foi tudo que restou de mim, uma alma em retalhos, um fantasma miserável que arrasta correntes entre o presente e o passado. Correntes forjadas de arrependimento e mágoa, pesadas demais para conseguir me libertar. A chave está aqui, mas o cadeado está lá.
Minha sentença, um regime perpétuo de arrependimento, marcado a ferro na minha carcaça, onde eu possa ver todos os dias, me cobra atenção o tempo todo. Aonde quer que eu esteja, com quem quer que eu esteja, é seu riso que eu ouço, são seus olhos que eu vejo, é seu nome que eu chamo. Não é justo comigo, mas principalmente, não é justo com eles. Que eu viva pela metade, o coração gelado dentro do peito, o corpo se decompondo em movimento. Meu corpo aqui, mas minha alma lá.
O tempo disse que não vai voltar. Não para mim. Minhas escolhas são essas, viver no tempo parado, procurando seu sorriso em outras bocas, encarando outras mãos em busca de uma branca pata de cabra, ou deixar de viver inteiramente, não no sentido literal, mas no sentido mais cruel que existe, da pessoa que abandona a vida porque sente que ela não vale mais a pena ser vivida. Os anos passam e eu estou ficando velho, e cada dia sem saber de você, porque deus me livre saber por onde você anda, com quem e fazendo o quê, mais eu sinto que aquele apartamento é o único lugar que existe para mim nesse mundo. Vazio, imaginário, cheio de vultos, de ecos, de lembranças de quando eu estava vivo. Quanto mais o tempo passa, não para mim, mas para os vivos, mais eu sinto que meu lugar não é aqui, meu lugar é lá, preso com o tempo que a gente quebrou.
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Tempo Quebrado
PoetryMeio crônica, meio poema, Tempo Quebrado fala de um coração partido e uma promessa não cumprida.