04. Zanbar

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Trinta e duas horas mais tarde ela acordou. Primeiro, sentiu aço envolvendo seus punhos e tornozelos. Depois, sentiu a mordaça de couro amarrada atrás da cabeça. Então percebeu que estava nua, ajoelhada num chão frio. Abriu os olhos devagar, apenas para enxergar uma parede manchada de vermelho. As correntes estavam presas no chão e, quando ela virou o rosto para tentar entender o que estava acontecendo, uma dor lacinante arrebentou em suas costas. Era como se toda a pele tivesse sido arrancada por unhas gigantes.

"Não olhe para mim!" uma voz masculina berrou, antes que outra chibatada atingisse as costas já flageladas. Ela esticou a coluna, tentando se desvencilhar da dor. Como não havia morrido?

Seu coração martelava nos ouvidos, a respiração limitada pela mordaça apertada entre os dentes. As feridas na barriga já estavam secas, uma camada de algo preto e gosmento servindo como curativo. Seus joelhos estavam doloridos, provavelmente por estar naquela posição há muito tempo. Quem era aquele homem, e por que estava fazendo aquilo? Seus dedos se agarraram nas correntes frias, como se segurá-las fosse o mesmo que segurar a mão de sua mãe. Fechou os olhos com tanta força que não saberia se algum dia teria coragem de abrí-los de novo.

"O senhor sabe quem é ela?" uma voz esganiçada perguntou. "Com certeza virão atrás".

"Estão todos mortos, rato" o homem respondeu com escárnio. "Ninguém virá" ele disse e Aýlla tremeu. Era verdade, então? Mas por que? Como? Quem havia feito aquilo? As perguntas passavam como flashes por seus olhos fechados. Outra vez as correntes bateram em suas costas, arrancando músculos e expondo os ossos. Como se fosse demais para aguentar, ela desabou outra vez.

Mais duas horas se passaram até que Aýlla voltasse a si. Estava numa cama macia, e dessa vez abriu os olhos com pressa, assustada. Uma mulher completamente careca removia uma agulha de seu braço, a seringa cheia da droga que a havia feito despertar.

"Costurei como pude" a mulher disse, ajudando a jovem a ficar sentada. "Você precisa voltar agora" completou, e só então a Ginaz percebeu que ainda tinha correntes nos punhos, mas não nos pés. Talvez, se conseguisse correr, ainda haveria esperança. "Nem adianta" a mulher alertou, observando enquanto a menina encarava os próprios pés. "Você está em Zanbar, menina, e seu novo proprietário não é o mais cruel daqui" concluiu.

Aýlla arregalou os olhos, entendendo. O planeta inteiro era um grande mercado de escravos. Ficava longe demais de tudo o que ela conhecia. Apesar de estar dentro dos Planetas Sincronizados, fica oculto sob o domínio das máquinas pensantes, e chegar lá exigia um tipo de status que os Ginaz jamais possuíram.

Engolindo em seco, sem conseguir proferir palavra alguma, acompanhou a médica que a puxava pelas correntes feito um animal. O espaço era todo esculpido em massa marrom e pedras na mesma cor. Tudo parecia sujo de alguma forma.

"A dor vai voltar logo, então eu se fosse você aproveitaria pa-" a mulher falava, mas foi interrompida por um estrondo, seguido de um tipo de terremoto.

"O que foi isso?" Aýlla perguntou, a garganta arranhando em cada sílaba.

"Nada natural" e mulher respondeu, voltando a puxar a menina, agora com mais pressa. A herdeira Ginaz vestia uma túnica branca que não alcançava seus joelhos. Sentia-se limpa, e seu cabelo molhado denunciava que alguém a havia banhado. Provavelmente a médica.

Quando a mulher abriu a porta pesada no fim do corredor, o caos se revelou. Fogo destruía o que momentos antes era uma arena de puro entretenimento para o dono daquela fortaleza. O telhado, agora em ruínas, revelava uma típica aeronave de guerra.

Dos escombros, como se não tivesse machucado algum, Feyd-Rautha surgiu, a pele imaculada e a armadura perfeitamente colocada. A mulher, desesperada, largou a corrente antes de sair correndo, deixando Aýlla para trás. Ele andava como se estivesse em algum tipo de campo de guerra, a expressão assustadora estampada no rosto. Assim que chegou a centímetros da garota, dilatou as narinas.

"Vou te levar comigo" o rapaz avisou e, sem cerimônias, puxou-a pelas correntes em direção à nave já pronta para que subissem.  Ele não se incomodou com o fato de que ela estava descalça andando numa estrutura em chamas, mas ela também não. Naquele momento, só conseguia pensar na sorte que havia tido, por ter despertado a obsessão do monstro que a salvara.

Ele mesmo pilotava, e ela acomodou-se na cadeira vazia logo ao lado. "Como sabia onde me encontrar?" ela perguntou.

"Eu não sabia" ele disse sem encará-la.

"Então como..." ela começou outra pergunta, engolindo as palavras conforme a nave subia, permitindo uma vista panorâmica do lugar.

"Queimei a porra do planeta inteiro" ele disse sério, e a Ginaz não conseguia tirar os olhos da destruição em massa. Até onde seus olhos cansados alcançavam, o fogo consumia. Uma frota inteira atacava sem nenhuma ressalva. Apavorada, mas ainda assim maravilhada, Aýlla não pôde conter o breve riso maníaco que escapou de sua garganta. Ainda que morresse nas mãos do Barão, teria valido a pena. Aquele lugar não tinha salvação, era melhor que queimasse

Assim que saíram da atmosfera, os efeitos dos remédios se foram, e a dor atacou outra vez. Ela, contudo, não demonstrou absolutamente nada. Manteve-se íntegra e firme como pôde naquela túnica branca feito a pele de Feyd. Uma espaçonave quase do tamanho do planeta em chamas aguardava. Acoplando a menor em uma das entradas, Feyd-Rautha se levantou enquanto a rampa descia.

"Se você for útil para alguma coisa, meu tio pode poupar sua vida" alertou e, sem olhar outra vez para Aýlla, partiu. Um grupo de seis soldados entrou logo em seguida para escoltar a jovem até o que parecia ser uma cela de prisão.

Até onde sabia, a viagem até Giedi Prime levaria quase um dia inteiro, então se permitiu respirar fundo, e pensar nas alternativas. Poderia cometer suicídio antes de chegar lá, e poupar-se o trabalho de tentar fugir. Ainda que fugisse, iria para onde? Faria o quê? Não havia propósito. Agora via isso com clareza. Por essa razão, quando as grades se abriram, ela caminhou sem questionar para onde seria levada.

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