Eu tinha três anos. Não sei como me conseguia me lembrar disso, mas me lembrava: eu estava com meu pai, ele estava trabalhando em alguma coisa, e eu estava pulando e dançando na volta.
Minha mãe tinha saído para trabalhar e logo ela voltaria.
Mas ao invés de ela voltar, o que meu pai e eu recebemos foi um telefonema. Lembro que ele começou a chorar ao telefone e eu disse a ele que tudo ia ficar bem quando mamãe chegasse, ele apenas me abraçou bem forte.
Acontece que minha mãe nunca chegou, ela nunca voltou para casa. Ela morreu. O carro que ela dirigia foi jogado em um barranco e acertou em cheio uma árvore, que por sua vez acertou em cheio a vida da minha mãe.
Não conseguia me lembrar de muita coisa de antes daquele dia. Não lembrava direito o rosto dela, nem muitas coisas a respeito. Mas lembrava-me de que ela cantava algumas canções caipiras para mim dormir e que ela tocava violão. Lembro que o cabelo dela era muito claro, o oposto do meu, mas que seus olhos eram gentis e bondosos e que ela dizia que eu era o seu amorzinho.
E só.
Até ontem à noite eu nem conseguia me lembrar do rosto dela, agora eu conseguia, embora gostaria muito de não lembrar. E não estava imaginando coisas. Revirei, assim que percebi não haver ninguém em casa, uma caixa pessoal do meu pai, onde estavam as memórias dele. E lá estava, uma foto dos dois em um restaurante, de antes mesmo de eu existir. Minha mãe e meu pai estavam radiantes e sorridentes para a câmera e, mesmo que a figura de meu pesadelo estivesse desfigurada em uma máscara de pavor tão diferente da expressão feliz de minha mãe, e seu rosto estivesse todo maculado pelo sangue, incontestavelmente era ela.
Era ela.
Tomei um minuto para me recuperar. O que estava acontecendo comigo? O que estava me perseguindo? Por que eu era obrigada a testemunhar essas coisas horrorosas?
Eu tinha sido traumatizada pela morte da minha mãe e nunca tinha percebido?
Larguei a foto no seu lugar e fechei a caixa o mais rápido possível guardando-a em cima do roupeiro do meu pai. Saí do quarto e me direcionei para fora de casa.
Minha vontade era me encolher em uma bolha segura de não-existência, mas isso não era uma opção para mim. Ao invés disso me escorei em meu carvalho e escorreguei até estar sentada em sua raiz.
Não me permiti lágrimas, apenas me concentrei em escutar minha respiração, enquanto eu a escutasse eu estaria segura. Eu estaria longe do suposto trauma. Eu estaria longe das sombras.
Uma inspiração, uma expiração. Duas inspirações, duas expirações. Três inspirações, três expirações. Quatro, cinco, seis, sete, onze, vinte. Na trigésima eu estava me sentindo mais calma e passei a observar os contornos do horizonte.
_O que está fazendo aqui, minha menina, pensando na vida? - Me sobressaltei assim que ouvi a voz de meu pai. Estava tão distraída que não notei a sua aproximação.
Um nó subiu imediatamente pela minha garganta, e eu tratei logo de engoli-lo.
_É. – Disse apenas, não confiando na minha capacidade de manter a voz estabilizada caso eu pronunciasse uma única palavra a mais que fosse.
_Quer me ajudar a tratar os animais? – Ele me perguntou. O encarei nos olhos, e esse era o meu pai. O pai que eu sempre tive. O pai carinhoso que sempre me protegeu, que sempre me distraiu quando notava algo de errado em mim.
_Sim. – Eu disse e me levantei com uma pontinha de esperança que meu pai tivesse andado tão aparvalhado ultimamente que nem se deu conta do que fez para mim. Que o que ele fez não foi proposital e que agora ele estava imensamente arrependido e que iria me ressarcir disso.

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SOMBRAS I
FantasyVivendo sozinha em Boston, tentando fazer uma vida para si mesma, ela tenta ignorar o frio na espinha e o terror cada vez que cai na inconsciência: Milla está sendo atormentada por pesadelos cada vez mais recorrentes, e cada vez mais reais. Sua vid...