Segui para a porta de Charlie depois do jantar. Lá estava ele à minha espera, do lado de fora.
Foi um pouco estranho, mas imaginei que a ansiedade tinha falado mais alto.
— Boa noite, Charlie — disse ao me aproximar.
— Alteza — ele me cumprimentou com uma reverência.
— Pode me chamar de Camila.
Ele sorriu.
— Ótimo. Camila.
Houve um silêncio constrangedor enquanto eu esperava que ele oferecesse o braço. Charlie,
porém, permaneceu imóvel, com um sorriso tenso, mas olhos animados. Quando enfim perdi as esperanças de ele se tocar, apontei para as escadas.
— É por ali.
— Demais — ele disse, e logo começou a andar na minha frente, embora não conhecesse o
caminho.
— Não, Charlie. Precisamos virar aqui — avisei umas três ou quatro vezes ao longo do trajeto. E ele não se desculpou em nenhum momento. Simplesmente seguia por onde eu mandava como se tivesse planejado tomar aquela direção desde o começo.
Fiz o possível para não tomar nota daquelas mancadas. Já tinha alguns garotos na minha
lista mental de eliminados, e não queria acrescentar o nome de Charlie a ela.
O palácio possuía quatro andares para cima, e mais alguns para baixo. O Jornal Oficial era
gravado no primeiro subsolo. Os quartos dos empregados e guardas estavam distribuídos entre o primeiro e o segundo subsolos, mas as alas que ocupavam não tinham ligação com os
estúdios. Havia ainda um abrigo monstruoso debaixo de tudo isso. Só lembrava de ter ido lá
duas vezes: uma durante um treinamento quando eu tinha três anos, e outra durante o ataque do último grupo de rebeldes.
Era estranho pensar naquilo. Os rebeldes estavam no passado, mas no momento enfrentávamos diferentes grupos contrários à monarquia. Quase desejei que os rebeldes
voltassem. Pelo menos podíamos nomeá-los. Pelo menos naquele tempo sabíamos exatamente contra quem estávamos lutando.
Balancei a cabeça e voltei ao presente. Eu estava em um encontro. Censurei a mim mesma ao lembrar. Meu pai gostaria de uma câmera ao nosso lado. Paciência. Ficaria para a próxima.
— Então, espero que você goste de filmes.
— Gosto — Charlie respondeu entusiasmado.
— Ótimo. Eu também, mas nem sempre posso ir ao cinema. Temos acesso a alguns filmes novos no andar de baixo, embora as opções sejam limitadas. Talvez a gente encontre algo bom.
— Que ótimo.
Era estranho perceber que ele estava bem na linha tênue entre a grosseria e a educação.
Fiquei pensando se fazia ideia da quantidade de erros que cometia.
Um mordomo já havia preparado a pipoca, e usei o controle remoto para passar as opções.
— Que tal O olho do observador? — sugeri. A sinopse indicava drama e romance, bem como o cartaz.
— Parece o.k. Tem alguma ação?
— Acho que não. No Diamantes negros tem.
O cartaz escuro e sinistro trazia a silhueta de um homem com uma arma. Era algo que eu jamais veria por vontade própria.
— Sim! Esse parece bom!
— Temos outras opções — eu disse, na tentativa de nos fazer voltar ao menu.
— Mas é esse que eu quero ver. Não vai ser assustador demais. E se for, pode ficar pertinho de mim.
Fiz uma careta, pensando que talvez deveria ter apostado mais em Zayn. Os assentos no cinema do palácio eram amplos e muito macios. O único modo de ficar pertinho de alguém seria me espremer no assento ao lado, o que não aconteceria de jeito nenhum. Além disso,
preferiria passar a vida com medo a admitir que estava assustada.
No fim das contas, porém, não era isso que me preocupava. É que o filme parecia simplesmente não valer a pena.
Dei um suspiro. Me sentia derrotada. Mais uma vez, ele aparentava não ter consciência de seu comportamento idiota. Deixei passar, mas pensei em avisar meu pai que os garotos precisavam de umas aulas de etiqueta.
O filme começou.
Para resumir: o pai do mocinho é assassinado pelo vilão. O mocinho passa a vida tentando
localizar o vilão, que foge várias vezes. O mocinho dorme com a loira platinada. A loira
platinada some. O mocinho mata o vilão, e a loira platinada reaparece. Ah, umas coisas explodem.
Charlie pareceu gostar, mas fiquei entediada. Se a loira platinada matasse alguém, talvez eu
tivesse achado um pouco mais de graça.
Mas pelo menos não precisamos conversar.
Quando subiram os créditos, acendi as luzes pelo controle remoto.
— E então, que tal? — ele perguntou; seus olhos brilhavam de empolgação.
— Mais ou menos. Com certeza já vi melhores.
O filme parecia ter deixado Charlie hiperanimado.
— Mas os efeitos eram incríveis!
— Sim, mas a história era cansativa.
Ele estreitou os olhos.
— Eu gostei…
— Que bom.
— Isso te deixa irritada?
— Não — respondi com cara de poucos amigos. — Só significa que você tem mau gosto.
Ele riu, um riso sombrio que parecia mais um mau agouro do que uma expressão de alegria.
— Adoro quando você faz isso.
— O quê? — perguntei antes de levantar e deixar o pote de pipoca no balcão para os
funcionários.
— Esperei a noite inteira por um pouco do seu mau humor.
— Como é?
— Queria deixar você brava ou ranzinza.
Ele também deixou o pote no balcão.
— Lembra quando você fez uma limpa no Salão dos Homens no dia seguinte ao desfile? —
ele prosseguiu. — Foi ótimo. Quer dizer, não quero voltar para casa, mas não me sentiria um
lixo caso gritasse comigo.
Olhei bem para ele.
— Charlie, você tem consciência de que nunca tínhamos nos falado e de que você está me
dizendo, na nossa primeira conversa, que a minha raiva o excita? Não consegue enxergar que isso é uma completa falta de senso da sua parte?
Ele abriu um sorriso, como se as minhas palavras não o tivessem afetado.
— Pensei que fosse apreciar minha honestidade. Tenho a sensação de que se irrita com facilidade, e quero que saiba que isso não me incomoda. Na verdade, eu até gosto.
Charlie segurou minha mão, mas eu a puxei no ato.
— Pensou errado. O encontro acabou. Boa noite.
Ele veio atrás de mim e me agarrou novamente. Eu não queria admitir o quanto estava assustada, mas podia sentir o coração batendo muito rápido. Ele era maior que eu e parecia
gostar de brigar.
— Não fuja — ele disse com uma voz sedosa. — Só estou tentando dizer que eu poderia ser um bom par para você.
Ele passou os dedos do alto da minha bochecha até o queixo. Sua respiração era cada vez mais rápida, e eu sabia que não podia perder tempo. Tinha que sair dali imediatamente.
Fechei a cara.
— E eu só estou tentando dizer que se você não tirar a mão de mim agora, estará morto antes de ter a chance de se tornar o par de qualquer pessoa.
— Delícia — ele provocou com um sorriso, pensando que eu estava gostando. — Que
joguinho divertido.
— Me solte. Agora.
Ele afastou a mão, mas eu ainda conseguia ver o desejo louco em seu olhar.
— Foi divertido. Vamos repetir em breve.
Subi as escadas, rezando para que ele não viesse atrás. Daquele momento em diante, haveria câmeras em cada um dos encontros.
Quando alcancei, sem fôlego, o primeiro andar, encontrei dois guardas e corri direto para eles.
— Alteza! — exclamou o primeiro quando caí em seus braços.
— Tirem-no daqui! — ordenei com o dedo apontado para as escadas. — Charlie! Tirem-no da minha casa!
Os guardas me soltaram e correram para capturá-lo. Eu me encolhi no chão, petrificada.
— Camila?
Logo atrás de mim, Dylan se aproximava. Soltei um grito e pulei para abraçá-lo.
— O que aconteceu? Você está ferida?
— Foi Charlie — gaguejei. — Ele agarrou o meu braço. Ele me tocou.
Sacudi a cabeça tentando compreender como as coisas tinham chegado àquele ponto tão rápido, e só então percebi que o processo não foi nada rápido.
Ele sempre me observava, mas jamais se aproximava, calmamente à espera do seu momento. Mesmo naquela noite, seus movimentos tinham sido lentos. Ele assistia à minha crescente frustração com um prazer discreto, curtindo a tensão cada vez mais forte até o momento de liberar toda a sua energia.
— Ele não parava de dizer coisas estranhas, e a forma como me olhava… Dylan, nunca tive
tanto medo.
Ambos viramos na direção do alvoroço que vinha das escadas. Os dois guardas lutavam para trazer Charlie até o primeiro andar. Assim que me viu, ele começou a gritar:
— Você gostou! — insistiu. — Você estava dando mole!
Dylan agarrou a minha mão e me arrastou até Charlie, embora meu instinto me dissesse para
correr na direção oposta. Meu irmão me deixou cara a cara com Charlie.
— Acaba com ele, Camila — Dylan ordenou. Olhei para ele achando que era uma piada, mas a raiva em seu rosto me dizia que não.
Fiquei tentada. Não podia retaliar as pessoas que me xingavam ou criticavam as minhas roupas. Não podia voltar ao desfile e dizer àquela gente como tinham agido feito idiotas. Mas ali, pela primeira vez, eu podia punir alguém que realmente me fizera mal.
Talvez eu tivesse dado um tapa, não fosse pelo sorriso pervertido de Charlie. Se ele não
desejasse aquilo, se não fosse sonhar com aquilo depois. Sexo e violência estavam conectados na cabeça dele, e lhe proporcionar um deles era quase como lhe dar o outro.
— Não posso — suspirei.
Charlie fingiu decepção.
— Tem certeza, linda? Eu não lig…
Nunca tinha visto Dylan bater em ninguém antes. Foi quase tão chocante quanto ver o corpo inerte de Charlie depois que o punho do meu irmão jogou a cabeça dele para trás num ângulo esquisito.
Dylan urrou e segurou a própria mão.
— Como dói! Ai, dói mesmo!
— Vamos levar você para a ala hospitalar — falei, empurrando Dylan pelo corredor.
— Alteza, devemos levá-lo também?
Olhei para a forma inerte de Charlie e notei que seu peito subia e descia.
— Não. Ponham-no em um avião, consciente ou não.
Me aconcheguei na cama de Dylan, com ele de um lado e Sofia do outro. Dylan flexionava os dedos enfaixados, que estavam bem inchados.
— Dói? — Sofia perguntou, aparentemente mais empolgado que preocupado.
— Um pouco, mas faria tudo de novo sem pensar.
Sorri para meu irmão gêmeo. Estava tão grata a ele.
— Se eu estivesse lá — Sofia anunciou —, teria desafiado Charlie para um duelo.
Comecei a rir, enquanto Dylan passou o braço por cima de mim para bagunçar o cabelo dela.
— Foi mal, maninha — disse Dylan. — Foi tão rápido que não tive tempo de pensar nisso.
Sofia balançou a cabeça.
— Todos esses anos de aulas de esgrima para nada.
— Você sempre foi melhor que eu mesmo — Dylan disse, enquanto Harry entrava no quarto
sem bater com um telefone no ouvido.
— Se você ao menos praticasse mais! — Sofia criticou.
Harry se jogou na cama, sem parar de falar ao telefone.
— Sim, sim. Muito bem, um segundo.
Ele pôs a mão sobre o bocal e perguntou para mim:
— Cami, de onde era esse tal Charlie?
Tentei lembrar do formulário.
— Acho que de Paloma.
— Era Paloma mesmo — Sofia confirmou.
Harry voltou a falar ao telefone:
— Maravilha. Ouviu isso? Entrarei em contato.
Ele desligou e escorregou o telefone para o bolso. Todos olhamos fixamente para ele.
Comecei a rir.
— Geralmente tento impedir qualquer coisa que você faça, mas desta vez não quero nem perguntar.
— Melhor assim.
Olhei para os meus irmãos, tão prestativos, inteligentes e endiabrados. Eu os havia odiado
tantas vezes por não serem mais velhos que eu, por me forçarem a assumir um papel que jamais desejei. Naquela noite, talvez pela primeira vez, eu os amava exatamente por serem quem eram. Sofua me distraía, Dylan tinha me defendido e Harry… Bom, ajudaria à sua maneira.
Harry tinha deixado a porta aberta, e minha mãe e meu pai entraram e encontraram todos os filhos reunidos.
Minha mãe parecia feliz por ver a família bem, mas meu pai estava abalado.
Ele pôs uma mão na cintura e começou a gesticular com a outra.
— Estão todos bem?
— Levemente assustada — confessei.
— E um pouco dolorido — Dylan acrescentou.
Meu pai engoliu em seco enquanto nos contemplava.
— Camila, eu sinto muitíssimo. Não sei como ele escapou do crivo. Pensei que os formulários fossem conferidos antes. Não fazia ideia…
Então ele parou. Parecia prestes a chorar.
— Estou bem, pai.
Ele acenou com a cabeça, mas permaneceu calado.
Minha mãe deu um passo à frente e retomou:
— Gostaríamos de estabelecer umas normas. Talvez manter um guarda por perto em todos os encontros daqui para a frente ou marcar os encontros em espaços públicos.
— Isso ou ter fotógrafos. Acho que ajudaria também — sugeri ao mesmo tempo que me
amaldiçoava mentalmente por não ter pensado nisso antes.
— Excelente ideia, querida. Queremos manter a segurança.
— O que me faz lembrar de uma coisa — meu pai falou, novamente sob controle. — Como
vamos proceder com Charlie? Devemos encobrir o ocorrido? Dar parte dele à justiça? Por mim, eu arrancaria cada um dos membros do corpo dele, mas é você quem decide.
Abri um sorriso antes de responder:
— Não daremos parte, mas também não vamos encobrir o que ele fez. Quero que todos saibam exatamente que tipo de homem ele é. Será punição suficiente.
— Muito sábio — concordou Dylan.
Meu pai cruzou os braços, pensativo.
— Se é isso que você quer, é isso que faremos — disse. — Fui informado de que ele está a
caminho de casa neste momento, então essa história está terminada.
— Obrigada.
Meu pai envolveu minha mãe com o braço, e os dois se viraram para sair. Minha mãe olhou para nós uma última vez.
— Aliás — disse meu pai por cima do ombro —, embora eu concorde com sua ordem de expulsá-lo sem saber se recobraria a consciência… seria péssimo para nós se ele tivesse morrido de fato.
Apertei os lábios, mas sabia que meus olhos estavam radiantes.
— Certo. Nada de expulsar pessoas inconscientes.
— E mais lutas com espadas! — Sofia berrou.
Enquanto Dylan e eu caíamos na gargalhada, nossos pais balançavam a cabeça.
— Boa noite. Não fiquem acordados até tarde — minha mãe preveniu.
E não era essa a nossa intenção, mas acabamos conversando por muito tempo. No final,
adormeci com as costas apoiadas nas de Sofia, o braço de Dylan embaixo da minha cabeça e
Harry agarrado ao meu pé.
Acordei na manhã seguinte bem antes dos outros e sorri diante dos meus irmãos, meus
protetores. A irmã que eu era queria ficar, mas a princesa que eu também era levantou e foi se
preparar para um novo dia.
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A Herdeira
Short StoryQuando Alejandro Cabello e Sinuhe Estrabao tornaram-se rei e rainha de Illéa, a primeira medida que decretaram foi abolir as castas de maneira gradual,para que a sociedade pudesse se adaptar a uma nova configuração, agora muito mais justa, sem os ró...