Tive vontade de congelar aquele momento, de esquecer todas as preocupações que pairavam sobre a minha família e ameaçavam desabar sobre nós a qualquer momento. Mas a paz já tinha acabado na hora do jantar. Alguns Selecionados que não participaram do jogo
reclamaram porque não foram avisados. Alegavam que os que tinham participado conseguiram um tempo a mais comigo injustamente. Por isso, os ausentes pediram uma espécie de encontro em grupo com eles.
Elegeram Itzan para me dizer isso, e ele se apresentou diante de mim com um olhar de
cachorro abandonado que revelava o abatimento coletivo do grupo. Estávamos do lado de fora da sala de jantar, e ele veio atrás de mim quando eu seguia para o quarto.
— Pedimos apenas outro encontro em grupo para manter a situação justa.
Esfreguei o rosto e tentei explicar:
— Não foi exatamente um encontro. Ninguém planejou nada, e a minha família ficou comigo
a maior parte do tempo, até meus irmãos mais novos.
— Nós entendemos, e concordamos em planejar tudo desde que você concorde em comparecer.
Suspirei, frustrada.
— Quantas pessoas seriam exatamente?
— Apenas oito. Austin pediu para não ser incluído.
Ri sozinha. Claro que Austin não queria nada com um bando de garotos choramingando por
mais tempo comigo. Tive vontade de arrastá-lo para um encontro só por despeito. Suspeitei que era exatamente isso que ele esperava.
— Vocês organizam o encontro. Eu faço o máximo para arrumar tempo.
Itzan ficou radiante.
— Obrigado, Alteza.
— Mas — emendei rápido —, por favor, informe aos garotos que esse tipo de pressão não melhora o conceito que tenho de vocês. Quando muito, é meio infantil. Então é melhor
prepararem o encontro da vida de vocês.
Itzan ficou sem chão, e eu o deixei para trás e tomei as escadas.
Mais dois meses. Eu conseguiria. Evidentemente, havia tantos baixos quanto altos, mas eu tinha a sensação de que o pior havia passado. Me sentia menos intimidada pelos garotos depois do jogo, e tinha certeza de que era capaz de dar ao meu pai o tempo necessário.
Só não sabia bem o que fazer com meus sentimentos.
Contornei as escadas para o terceiro andar e encontrei Dylan de saída do quarto. Ele havia
trocado o paletó por um colete, e tive certeza de que seguia para a nova suíte de Normani.
— Você nunca para de sorrir? — perguntei, incapaz de acreditar que seu rosto pudesse
sustentar aquela expressão por tantos dias seguidos.
— Não quando ela está aqui — ele respondeu, para em seguida ajeitar o colete. — Estou bem?
— Como sempre. Em todo caso, tenho certeza de que ela não liga. Ela está tão caidinha por você quanto você por ela.
Ele suspirou.
— Também acho. Espero estar certo.
Era como se ele já tivesse partido. Na cabeça dele, estava em Paris cobrindo Normani de
beijos e discutindo qual seria o nome de seus filhos. Senti que ele me abandonava… e não
estava pronta para isso.
Engoli em seco e ousei dizer o que estava pensando já fazia um tempo.
— Veja, Dylan, ela é ótima. Não há como negar. Mas talvez não seja ela.
O sorriso de meu irmão finalmente vacilou.
— O que você quer dizer?
— Que talvez você devesse considerar outras opções. Há tantas pretendentes em Illéa que
você nem notou. Não tenha pressa para fazer algo que não pode ser desfeito. Se você e
Normani terminassem, não aconteceria nada. Se vocês se divorciassem, poderíamos perder nossa aliança com a França.
Dylan me encarou.
— Camila, sei que você hesita em se deixar envolver, mas sei o que sinto por ela. Só porque você tem medo…
— Não tenho medo! — insisti. — Só quero ajudar você. Amo você mais do que qualquer um. Faria quase qualquer coisa por você, e pensava que você faria o mesmo por mim.
Todo e qualquer vestígio de alegria deixou o rosto de Dylan.
— Eu faria. Você sabe que eu faria — afirmou.
— Então, por favor, pense nisso. É só o que peço.
Ele fez que sim, passou a mão na boca e na bochecha, parecia conturbado… quase perdido.
Dylan olhou para mim, deu um leve sorriso e abriu os braços para me envolver. Ele me
abraçou forte, como se nunca precisasse tanto de um abraço na vida.
— Amo você, Cami.
— E eu amo você.
Ele me deu um beijo na cabeça e me soltou para retomar o caminho do quarto de Normani.
Neena me esperava com a camisola pronta.
— Algum plano para a noite, Alteza? Ou quer se trocar para dormir?
— Dormir — afirmei. — Mas espere só para ouvir o que esses rapazes estão aprontando
agora.
Contei a ela sobre o encontro coletivo que os rapazes exigiram, acrescentando que Austin
tinha pedido para não participar.
— Atitude esperta a dele — Neena concordou.
— Eu sei. Estou pensando se isso lhe dá direito a um encontro especial, só para ele.
— Um encontro de verdade ou de despeito?
Comecei a rir.
— Nem eu sei. Argh, o que vou fazer com todos esses garotos?
— Arrancá-los daqui. Olha! Ainda tem restos de grama que deixamos passar hoje à tarde — ela disse, exibindo as folhas antes de jogá-las no lixo.
— Foi tão divertido — falei. — Nunca vou esquecer o rosto da minha mãe na janela,
torcendo por mim. E eu pensava que estaria encrencada.
— Queria ter visto.
— De verdade, você não precisa se esconder no meu quarto o dia inteiro. Está sempre limpo. E não gasto muito tempo para me vestir de manhã. Você devia me acompanhar, ver mais
do palácio além do seu quarto e do meu.
Ela deu de ombros.
— Talvez.
Percebi pelo seu tom de voz que a possibilidade a deixava empolgada. Me perguntei se não
deveria treinar Neena para viagens. Seria bom tê-la comigo da próxima vez que fosse para o
exterior. Mas, se ela realmente tinha a intenção de sair em mais ou menos um ano, talvez não
valesse a pena. Sabia que não poderia mantê-la como criada para sempre, mas lamentava a
ideia de ter que substituí-la.
Desci para o café da manhã no dia seguinte e notei que Dylan não estava lá. Fiquei
preocupada com a possibilidade de ter ficado chateado comigo. Nunca ficamos brigados por
muito tempo, mas eu odiava quando acontecia. Às vezes sentia que ele era um pedaço de mim.
Demorei um pouco para notar que Normani também não tinha aparecido. Supus que uma de duas coisas tinha acontecido: Dylan havia recobrado o juízo e dito a ela que precisava
considerar outras opções, e por isso os dois estavam se evitando… Ou tinham passado a noite juntos e talvez ainda estivessem na cama.
Fiquei pensando no que meu pai pensaria daquilo.
Então percebi que alguns garotos também estavam ausentes. Talvez Normani e Dylan não
estivessem abraçados na cama, afinal. Era possível que houvesse alguma epidemia de gripe ou algo assim. Era bem mais provável… e bem menos empolgante.
Saí da sala de jantar e dei com Roobertchay e Juliu à minha espera. Ambos curvaram-se em
profunda reverência.
— Alteza — saudou Juliu —, sua presença é requerida no Grande Salão para o maior
encontro da sua vida.
— É mesmo? — perguntei com um sorriso irônico.
Roobertchay começou a rir.
— Passamos a noite inteira trabalhando nisso. Por favor, diga que tem tempo agora.
Conferi as horas no relógio da parede.
— Talvez tenha uma hora.
Juliu se animou.
— É mais que suficiente. Venha conosco.
Os dois ofereceram o braço. Agarrei os dois e me deixei conduzir até o Grande Salão.
Um palquinho havia sido montado contra a parede dos fundos, coberto com o que pareciam ser nossas toalhas de Natal. Os holofotes que às vezes usávamos em festas estavam apontados
para o centro do palco. À medida que nos aproximávamos, os garotos pediam silêncio uns para os outros e se alinhavam.
Fui levada até uma cadeira solitária, posicionada bem diante do palco. Me sentei ao mesmo tempo curiosa e confusa.
Itzan abriu os braços e anunciou:
— Bem-vinda ao primeiro Show de Talentos da Seleção, estrelando um punhado de fracassados que competem pela sua atenção.
Eu ri. Pelo menos eles admitiam.
Timothée sentou-se ao piano e começou a tocar uma música que parecia uma modinha antiga.
Então todos saíram do palco, exceto Itzan.
Ele fez uma reverência solene, mas ao levantar a cabeça exibiu um sorriso amplo e sacou três bolinhas de pano. E começou a fazer malabarismo. Era tão besta que acabei rindo.
Itzan virou para o lado, e alguém dos bastidores lhe lançou uma quarta bolinha. Depois a quinta, a sexta. Ele conseguiu mantê-las no ar por uns segundos até que todas caíram; uma delas até acertou a cabeça dele.
Todos lamentaram, mas aplaudiram o esforço, inclusive eu.
Jorge arrumou um arco e flecha e um alvo coberto de balões e conseguiu acertar cada um
deles. Quando estouravam, soltavam nuvens de purpurina que aos poucos cobriam o chão.
Timothée continuou tocando e trocava a melodia a cada ato.
Tanner — que me surpreendeu ao se meter em outro encontro coletivo — subiu ao palco para
desenhar. Desenhar horrivelmente. Tinha certeza de que Harry fazia homens-palito melhores quando criança. Contudo, como a ideia do show era destacar os seus pontos fortes de um jeito burlesco ou desfiar suas fraquezas de maneira cômica, seu número acabou sendo bem simpático. Tentei até pensar em um jeito de pegar discretamente o desenho que ele fez de mim, que consistia em pouco mais que uma cabeça redonda e umas ondinhas marrons para
representar meu cabelo. Eu já tinha sido desenhada e pintada de inúmeras maneiras… mas nenhuma delas era tão fofa.
Roobertchay cantou, Melton brincou de bambolê, Juliu fez embaixadinhas por um tempo incrivelmente longo e Jacob leu um poema:
“Querida princesa Camila,
Essa rima é difícil para mim,
E apesar de sermos uns chatos,
Amamos você mesmo assim.”
Passei o tempo todo rindo, assim como a maior parte dos garotos.
O grand finale veio quando os oito se amontoaram no palco para dançar. Ou melhor, para tentar dançar. Com muitos requebrados e rebolados, o que me fez corar algumas vezes. No final, fiquei bem impressionada. Eles tinham organizado tudo do dia para a noite, para me
entreter e se desculpar ao mesmo tempo.
Havia muito carinho naquilo tudo.
Quando eles fizeram a reverência final, aplaudi de pé.
— Bem, preciso trabalhar… mas o que acham de eu pedir algumas bebidas e conversarmos
um pouco em vez disso?
Todos concordaram ao mesmo tempo, e pedi para trazerem chá, água e refrigerantes. Não
quisemos saber de mesas. Em vez disso, sentamos no chão. Às vezes, aqueles moleques chatos sabiam ser muito legais.
Dylan também não apareceu para jantar. Observei os Selecionados entrarem em fila,
seguidos por todos os nossos convidados. Depois veio minha mãe, um pouco atrasada… mas
nada de Dylan.
Meu pai se inclinou para mim e perguntou:
— Onde está seu irmão?
Dei de ombros e continuei cortando o frango.
— Não sei. Não o vi o dia inteiro.
— Isso não é do feitio dele.
Corri os olhos pela sala de jantar e vi os dezenove candidatos restantes. Lawrence piscou para mim, e Charles me deu um oi com a mão. Ao olhar para Jacob, só consegui pensar em seu
poema bobo. Tanner acenou com a cabeça quando nossos olhares se encontraram. E quando Shawn se espreguiçou, me lembrei do seu cuidado ao me ensinar a jogar beisebol.
Ah, não.
Tinha acontecido. Mesmo com os garotos com quem eu não tinha passado muito tempo.
Soube naquele momento que cada um deles tinha algo de especial. Alguns deles já haviam
ganhado um lugar especial no meu coração, eu tinha consciência disso, mas como foi que todos se tornaram importantes para mim?
Senti meu peito pesar. Teria saudades desses garotos estranhos e barulhentos. Porque,
mesmo se eu milagrosamente escolhesse um deles para ficar comigo no final, não haveria
como manter todos por perto.
Estava pensando em como, um mês antes, me preocupava com a ideia de perder a tranquilidade do meu lar, quando Gavril entrou. Atrás dele vinha um dos jornalistas da equipe
do Jornal Oficial.
Ele fez uma reverência diante da mesa principal e encarou meu pai.
— Lamento incomodar, Majestade.
— Não incomoda. O que houve?
Gavril percebeu todos os olhares curiosos ao redor e pediu:
— Posso me aproximar?
Meu pai fez que sim com a cabeça, e Gavril cochichou algo em seu ouvido.
Meu pai franziu a testa, incrédulo.
— Casou? — ele perguntou em voz alta o suficiente para que apenas minha mãe e eu
escutássemos.
Meu pai afastou a cabeça e olhou fixo para Gavril.
— A mãe dela aprovou. Está feito, tudo dentro da legalidade. Ele foi embora.
Congelei. Saí correndo da sala de jantar.
— Não, não, não — balbuciava, enquanto corria escada acima.
Fui primeiro ao quarto de Dylan. Nada. Tudo estava intacto, nenhum sinal de malas feitas às
pressas ou de uma saída urgente. Mas, sobretudo, nenhum sinal do meu irmão.
Disparei em direção à suíte de Normani. Um dia antes eu tinha visto que sua bagagem
transbordava com tantas opções de trajes, capazes de lotar meu closet. As malas ainda
estavam lá, com exceção da menor delas. E nada de Normani.
Me apoiei contra a parede. Estava muito chocada para processar aquilo. Dylan tinha ido
embora. Ele tinha fugido e me deixado ali sozinha.
Permaneci em uma espécie de transe. Será que eu podia trazê-lo de volta? Gavril disse algo
sobre legalidade. O que isso queria dizer? Havia alguma maneira de desfazer aquilo?
Meu mundo ficou turvo, ligeiramente desalinhado e errado. Como eu poderia fazer qualquer
coisa sem Dylan?
Acabei no meu quarto, sem nem saber como tinha caminhado até lá. Neena me mostrou um
envelope.
— O mordomo de Dylan entregou isto há cerca de meia hora.
Arranquei o papel das mãos dela.
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A Herdeira
Short StoryQuando Alejandro Cabello e Sinuhe Estrabao tornaram-se rei e rainha de Illéa, a primeira medida que decretaram foi abolir as castas de maneira gradual,para que a sociedade pudesse se adaptar a uma nova configuração, agora muito mais justa, sem os ró...