A enfermeira eficiente e chata irrompeu sala adentro, pegou o que havia esquecido e saiu do mesmo jeito que entrara, ela tem de parar com essas invasões bruscas, qualquer dia ainda morro de susto Kamia pensou enquanto acordava do seu sono, e só então deu conta do ambiente que a rodeava, era o quarto de um hospital, tapou a boca com a palma de uma das mãos com se tivesse proferido um disparate, a ficha caiu, foi tudo um sonho, Kamia não queria acreditar no óbvio, mas pareceu tudo tão real, ela resistia em aceitar que tudo aquilo foi apenas um sonho, não teve transplante, não há coração novo, não existe casa branca, nem o amor da sua vida, foi tudo fruto da sua imaginação, sua perplexidade estava escrita na sua testa pelas linhas formadas com o cenho que franziu de tão confusa, meu Deus, eu nem sequer perguntei pelo seu nome. Kamia não sabia dizer se a dor que estava a sentir era pelo facto de não ter um coração novo ou pelo facto de que o único amor puro que sentira até aí fora um mero sonho, possivelmente era por causa de ambos. Não conseguia chorar, não se pode chorar por algo que gente nunca teve, essa é a dura verdade, Kamia podia sentir apenas algo parecido com uma bola gigante na sua garganta impedindo a passagem de qualquer coisa que pudesse passar por aí. Pareceu tão real. E para a surpresa de Kamia a borboleta de tons alaranjados ainda estava pousada na base da janela, o que a levou a cogitar que provavelmente o sonho que pareceu levar dias não durara mais que três minutos, ou talvez não fosse um sonho, talvez fosse uma visão ou previsão do seu futuro caso ela assustasse a borboleta e ela batesse asas daí a fora, e se isso for verdade, bastaria apenas á Kamia assegurar-se que afugentaria a borboleta dessa vez, para causar um tufão do outro lado do mundo, e num piscar de olhos toda a sua visão se tornaria realidade. A suposição era tentadora, Kamia estava disposta á voltar para Benguela, para a casa branca e definitivamente para os braços daquele homem tão... tão... que ela conhecera no seu futuro. Mas seu coração largo, que batia desritimado no seu peito, á chamou a razão, irónico, pois corações nunca chamam seus donos á razão, mas o coração de Kamia não era um coração normal. Kamia ouvira as palavras do seu coração que pareciam a voz tremula de um mago sábio saído dessas histórias infantis dizer " será a tua felicidade maior que a tua culpa?" por mais que Kamia odiasse o seu coração, sabia que ele estava certo, não podia simplesmente ser tão egoísta a ponto de passar por cima de uma vida para conquistar a sua felicidade, normalmente para as pessoas normais essa nunca é uma escolha difícil, é claro que as suas vidas são mais importantes que a vida de um estranho, as pessoas normais afugentariam a borboleta num estalar de dedo, mas Kamia não era uma pessoa normal, Kamia tem um coração grande, literalmente, e figurativamente, por isso decidiu afundar em seus lençóis ao invés de andar até á janela e afugentar a borboleta dos tons alaranjados. Kamia entendera que não é sua jurisdição decidir pelas vidas alheias, essa é uma responsabilidade do destino, por isso deixaria o destino decidir pela vida da rapariga com a beleza exponencial. Para ela, o homem só tem o direito de mudar o curso das coisas menos importantes como dinheiro ou uma carreira, as coisas mais importantes, como a vida, a morte, saúde, família e amores é responsabilidade daquela mão que escreve o destino, alguns dizem que essa mão é a mão de Deus, que seja, não se sabe, a única coisa que se sabe é que só essa mão tem o poder sobre a vida, o tempo, e a morte, essa mão funciona como as mãos do autor que escreveu essa história, é ele quem decide quem morre e quem vive na história da vida, por mais que o homem reme contra a maré.
Embora Kamia não afugentara a borboleta de tons alaranjados, isso não foi suficiente para salvar Jéssica, ela morreu mesmo, não foi sonho algum os membros contorcidos, pois a última crise de Jéssica acontecera dias antes da visão de Kamia.
A escolha de Kamia não mudou o destino trágico de Jéssica, mas pelo menos Kamia escolheu não ser egoísta, uma escolha que só pessoas que têm o coração grande como ela são capazes de fazer na hora H.
"MAKTUB"
FIM