Dance comigo

Único

O muxoxo canino de tristeza ecoou pelo quarto quando Enid se jogou sobre sua cama. Os cabelos tingidos temporariamente de rosa já haviam retornado ao loiro, ainda que manchado pelo vermelho do corante lançado sobre todos no Rave'N. Estava chateada, o garoto que convidou não apenas estragou o baile, como sequer dançou com ela.

A ideia inicial era deixar Ajax com ciúmes, mas não esperava que ele já tivesse encontrado um amor igualmente perigoso às cobras que levava na cabeça: Bianca, a sedutora sereia.

Abafou um grito com o travesseiro, ela perdera seus dois paqueras em uma única noite! Quão azarada tinha que ser? Era demais pedir um romance naquela escola de excluídos?

— Pare de fazer tanto barulho, está me desconcentrando — Wednesday exigiu do outro lado do quarto, onde digitava seu livro na antiga máquina de escrever.

— Estou em profundo sofrimento — Sinclair se sentou na cama, abraçando um dos diversos ursinhos de pelúcia — e você nem para me consolar!

— A ideia de profundo sofrimento me parece ótima, não sei do que está reclamando — ela girou sua cadeira com rodinhas para olhar a colega de quarto.

— Urgh! Mas não é! — retrucou, passando as mãos com agressividade no próprio rosto.

A Addams se manteve em silêncio por um momento que pareceu durar a eternidade, até que enfim levantasse e seguisse para a parte que mais odiava naquele quarto: a cama multicolorida de Enid.

— O que foi? — perguntou, sentando-se ao seu lado.

— Tudo! Você viu o horror que foi o baile, e foi tudo culpa minha! Se eu não tivesse chamado aquele imbecil, nada disso teria acontecido! — choramingou, instintivamente tentada a se jogar no colo da amiga para chorar, porém, parando ao lembrar que ela repudiava contatos físicos.

— Não é culpa sua — Wednesday olhou-a com fervor, como se a desafiasse a dizer o oposto. — O que mais está te chateando?

— Você quer mesmo saber? – Não pode evitar sorrir. Seria possível que tivesse amolecido algo ali dentro daquele coração de pedra?

— Não me olhe assim, está me dando arrepios. Do tipo que não gosto de sentir — repreendeu. — Agora aproveite a minha boa vontade antes que eu decida ouvir meus instintos e sair desse mar de arco-íris que chama de cama.

Sinclair riu.

— Ok, ok — ergueu as mãos, como se desse por vencida. O ar animado logo se esvaziando ao começar a falar. — Eu não consegui dançar na festa.

— Impossível, eu te vi dançando — uniu as sobrancelhas em descrença.

— Não! Digo, sim! — passou novamente as mãos sobre o rosto. As unhas de loba saltando sem seu controle. — Eu dancei sozinha!

— Então qual o problema? — questionou. A colega era confusa, mas agora parecia mais ainda.

— Eu queria dançar com alguém, Wednesday! — explicou, o olhar de cachorrinho abandonado surgindo em seu rosto. – Que nem você e o Tyler. Queria ter alguém para dançar comigo! Um par! — finalizou, esperando um consolo que não veio.

Ao invés disso, a Addams se levantou e retornou à sua parte do quarto. Enid já esperava isso, era um milagre que a amiga tivesse aceitado interromper seu momento de escrita para ouvi-la. Não poderia negar haver sido uma evolução, mas ainda assim, queria que ela tivesse um pouco mais de compaixão por si e a consolasse. Nem precisava ser com uma clássica noite das garotas — que já insistiu em outras vezes —, só uma palavra gentil já teria bastado. Suspirou, estava pronta para ir no quarto de Yoko quando uma música lenta se espalhou pelo ambiente, vinda da vitrola de Wednesday.

— O que...?

— Dance comigo — estendeu a mão entre as duas metades do quarto.

— Espera, sério?! — sorriu de orelha a orelha.

— Se não vier agora, a música acaba e não irei colocar outra — ameaçou com um sorriso mínimo que a outra não viu.

— Ok! — Sinclair saltitou até ela, felicidade transbordando em seu peito.

As duas uniram as mãos esquerdas e a mão livre de Wednesday foi para a cintura de Enid, que apoiou a sua própria no ombro alheio. Iam mesmo dançar? Era o que passava por sua cabeça. Uau, aquela provavelmente seria a vez que mais teriam contato físico!

Não teve muito mais tempo para pensar ou questionar, foi guiada pelo quarto no ritmo da música. Para um disco da Addams, aquele som até que não parecia tanto uma marcha fúnebre. Ainda soava melancólico, mas tudo bem, estavam dançando, afinal!

Sorriu para a amiga, caninos mais alongados que o normal à mostra. Elas giraram e Sinclair se desculpou por pisar em seus pés.

— Tudo bem — respondeu, sentindo-se (embora fosse humilhante admitir) feliz naquela dança, como se houvesse sido presenteada com um quit de embalsamento completo.

Wednesday parou e girou o corpo de Enid no mesmo lugar, a risada da colega se misturando com a melodia que já chegava ao fim. As duas se aproximaram novamente para rodopiar juntas e Addams jogou seu corpo para trás, sendo segurada pela força monstruosa da outra como se não fosse nada enquanto a vitrola parava de tocar o disco.

— Isso foi perfeito! — a Sinclair pulou no mesmo lugar, batendo palmas e sorrindo.

— Foi agradável — concordou.

— Então... posso te dar um abraço? — ela se aproximou com um olhar traquina.

— Não — cortou, seca.

— Ah, tudo bem, eu já esperava — suspirou, rindo. – Obrigada pela dança! — se aproximou rapidamente e antes que a outra pudesse reagir, deixou um beijo em sua testa.

Ainda faltava muito para que Wednesday Addams se sentisse cem por cento confiante com sua presença, mas não desistiria de ocupar um local em seu coração de gelo! Afinal, água mole em pedra dura, tanto bate até que fura, não é mesmo? E, só de ter visto esse gesto de gentileza hoje, poderia dizer que o ditado não estava errado.