Prólogo

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Depois que encontrou o corpo do vigilante barbarizado no meio do pátio, a mulher ouviu quando algo se mexeu nas sombras do estacionamento mal iluminado e estremeceu. Nessas horas até mesmo o menor barulho faz o maior alarde. Ela tentou controlar a respiração, tinha visto isso em algum documentário, manter a calma é essencial.

A noite particularmente fria passava despercebida, pois ela só sentia o calor aumentar. O cabelo ondulado e escuro ia grudando no rosto que carregava uma expressão angustiada. Precisava sair dessa, não só por ela, mas pelo filho que lhe aguardava em casa.

Nada disso aconteceria se ela tivesse largado sem fazer hora extra. É verdade, mas se afundou em planilhas e agora enfrentava este impasse, contudo nada estava perdido, pois tinha um bom plano.

Orquestrou que precisaria correr até o carro que deixou estacionado numa vaga há dois blocos da saída do prédio, talvez se conseguisse pegar as chaves que havia guardado na bolsa de mão sem fazer zoada, poderia então chegar no veículo onde suas chances de escapar eram melhores. Ela tinha guardado uma pistola embaixo do banco do motorista justamente para esse tipo de situação, no caso de cruzar com um bandidinho ou um encrenqueiro.

O tempo era seu inimigo, sabia disso, mesmo que não visse quem estava por trás daquela perseguição silenciosa e maníaca. Não queria ter que ficar e descobrir.

Quando tentou sacar as chaves da bolsa, a executiva escutou um som animalesco e aterrador vindo em sua direção. Que tipo de criminoso doentio era aquele? Não tinha tempo para perguntas. Desvencilhou-se dos saltos e começou uma investida até onde havia parado seu automóvel.

Às vezes ela tropeçava devido à saia que, com certeza, não era um modelo esportivo. A roupa era feita de um tecido rígido e justo ao corpo. Enquanto ela lutava contra a própria elegância, o som se tornava quase nítido. Seja lá quem fosse, estava cada vez mais próximo.

Se antes ela já não estava apavorada o bastante, agora o desespero se apossou dela por completo, pois numa dessas em que trambicava, deu um passo em falso e, quando viu, já estava no chão dura e estatelada. Era o pior que poderia lhe acontecer neste momento. O coração acelerou, mas não se rendeu ao pânico.

Levantou o mais rápido que pode. Preparou-se para continuar correndo. Estava quase lá, já podia enxergar sua Mercedes, era um pequeno alívio, mas não estava tranquila, não ainda. Ficaria se sentindo melhor uma vez que estivesse na estrada muito, muito longe dali.

Um silêncio cobriu o ambiente. Não sabia o que era pior, o barulho... ou a falta dele. Só escutava os próprios passos suspeitosos e amedrontados. A tensão iminente pairava no ar.

Ao chegar no veículo tentou destravá-lo, mas suas mãos estavam tremendo demais para acertar a tranca. Olhou para o seu reflexo e percebeu um pequeno corte no queixo, devia ter sido da queda de antes, entretanto ela mal podia sentir o sangue escorrendo dado tamanho estado de choque no qual se encontrava naquela altura.

Finalmente a chave encontrou seu caminho, a funcionária da Telefonia — já desesperada — destrancou a fechadura rapidamente. Pensou que estava segura, contudo, o susto maior veio em seguida quando tentou puxar a porta e foi quase que esmagada contra a lataria do veículo por uma criatura que tinha o dobro do seu tamanho.

Naquele instante ela ainda não podia sentir, mas sabia que ao menos alguns ossos haviam quebrado. Tamanho foi o susto que tomou, a mulher teve um vislumbre onde viu de forma nublada toda sua vida diante dos seus olhos numa fração de segundos. A aflição frenética lhe abateu quando a figura se revelou dentre as sombras. Aquilo era real.

Era um bicho com cabeça larga, semelhante a um touro e dentes medonhamente entramelados, quase morcegais, que a segurava com suas mãos enormes e deformadas. A executiva chorava e se debatia. A criatura tinha asas malformes ao longo dos seus braços grossos, com unhas que pareciam esporões de águia de tão finas e rígidas. Traços que no calor do momento não eram vistos com tanta clareza, é certo, porém seriam sentidos.

Enquanto arremessava sua caça no ar, o predador então abriu um corte profundo nas costas da vítima. Ao ver o sangue escorrer e manchar o branco da pintura do carro; aquilo que se mexia no escuro celebrou e grunhiu. Abocanhou a vítima ferozmente na altura do ombro e continuou a extirpá-la.

Os gemidos ao sentir a mordida firme foram simultaneamente inevitáveis e inúteis. A mulher sentiu um pedaço de si ser arrancado, no entanto, logo em seguida, deu-se por anestesiada e sem forças para resistir. Podia ouvir a criatura se alimentando, engasgando-se no seu sangue. Deus proíba admitir, mas aquilo causava nela um certo prazer.

Sentiu ali que logo desmaiaria, mas, antes de perder a consciência, a moça viu a pele escura da fera ficar coberta por um tom rosado. 

— Que bonito! — Catarina fantasiou, lembrando-se de seu nome uma última vez. Era como uma luz no fim de tarde, uma bela imagem para se despedir do mundo com uma lembrança feliz. Esqueceu-se do resto, oh! Mundo cruel. O beijo da morte era pesado, tal como seu corpo que esmorecia... mais e mais.

Logo a vista foi ficando turva e os sentidos se tornavam imprecisos. As mãos dela, antes tomadas por espasmos, começaram a ficar frias e rijas como a noite. As pernas, desde antes, já não as conseguia sentir. Nem em seus pesadelos mais cruéis ela se imaginou partindo desse jeito. Estava morta? Ela não sabia responder.

Estava morta? O seu corpo bateu no chão, punido contra o asfalto. Ouviu uma voz... Era humana?

O Édito VampíricoOnde histórias criam vida. Descubra agora